sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Os professores do Colégio

Da primeira à quarta séries nossa educação era diligente e cuidadosamente ministrada pelas próprias freiras, que aproveitavam para inserir ensinamentos religiosos em tudo quanto podiam, apesar de algumas de nós nem serem católicas e terem anotado pelos pais em suas cadernetas que não queriam que recebessem educação católica.

Isso era desconsiderado pelas freiras, que inseriam religião sempre que fosse possível e tratavam de eliminar qualquer coisa, mesmo fato científico, que não estivesse de acordo com os ensinamentos da Santa Igreja Católica. Anos mais tarde quando fui estudar em escola estadual, percebi que muita informação me havia sido subtraída por ser considerada subversiva talvez.

Qualquer ensinamento que fosse capaz de nos suscitar pensamentos e reflexões que nos levassem a questionar dogmas, preceitos ou normas da Igreja Católica era simplesmente banido e não tínhamos acesso a ele.

Livros contendo material impróprio (segundo o julgamento delas lá) eram meramente proibidos. Assim livros que são belos representantes da literatura brasileira e portuguesa que hoje são exigidos até para quem vai fazer vestibular, naquela época eram inacessíveis para nós. Quem fosse ao menos suspeito de ter lido, ter recomendado ou mesmo tido um exemplar dos livros banidos nas mãos era severamente punido.

Quando mais tarde fui saber do AI-5 e da censura, a princípio me pareceram coisas naturais, já que fui educada numa instituição que não se dava ao trabalho de rebater críticas, simplesmente as eliminava como impróprias.

Tive problemas na adolescência para escolher meus caminhos e decidir o que era ou não benéfico para mim, acredito que por essa mesma razão. Acostumada a ter um séquito de freiras para decidir por mim, ao sair do colégio e descobrir que dali pra frente eu é que teria que decidir, meu primeiro momento foi de total desorientação.

Da quinta série em diante ainda prosseguiam várias freiras como professoras, mas algumas matérias contavam com pessoas "normais" dando aulas, se bem que sob estrita vigilância das freiras. Ao primeiro sinal de má influência ou desvios da matéria da aula eram sumariamente despedidos e substituídos por outros mais confiáveis.

Nosso contato com o mundo adulto real era portanto bastante restrito, algumas de nós completavam os estudos e entravam para uma faculdade sem saber como se faziam bebês, por exemplo. Imagino que tornavam-se alvo de chacota nas escolas para onde iam. Quando mudei de escola, percebendo o ambiente estranho tratei de ficar de boca fechada e dessa forma consegui passar despercebida, mas outras colegas de infortúnio não tiveram a mesma sorte.

Devido às suas línguas grandes logo deixaram transparecer quem eram e o tamanho de sua ignorância nas "coisas da vida" e suas vidas foram bastante dificultadas e atormentadas pelos colegas de classe. Apesar de ser considerada como boba por algumas freiras e como cínica por outras, de boba e cínica eu nunca tive nada, portanto saí-me muito bem em minha primeira incursão pelo mundo "normal". Tão bem que logo de cara arrumei um namorado, comecei a matar aulas e levei uma bomba. Mas aí eu já estava livre do Colégio.

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domingo, 2 de novembro de 2008

As boas maneiras da futura "fada do lar"

Estudando no colégio tínhamos o privilégio de ter algumas aulas que nenhuma outra escola ministrava, por motivos insuspeitados por nós naquela época. Hoje eu entendo perfeitamente, mas na época a lavagem cerebral ia em estágio tão adiantado e era tão bem sucedida que éramos incapazes de enxergar o que se esfregava em nossos empertigados narizes.

Uma das "matérias" exclusivas de nossa instituição de ensino eram as boas maneiras. Mas eram boas maneiras diferentes, para quando tivéssemos nossos maridos e casa para cuidar. Claro que também éramos instruídas sobre como devíamos nos comportar para conseguirmos esse "prêmio", mas a coisa não parava aí. Segundo nossas orientadoras religiosas e em tudo o mais, depois de conquistar era necessário saber conservar.

Tínhamos um caderno que era escrito por nós mesmas, repleto de anotações que eram ricas em detalhes sobre como deveríamos agir depois de casadas. Sempre esperar o marido com um sorriso e um batonzinho claro na boca. Nunca questioná-lo quanto ao que fazia "lá fora", já que o que importava era o sagrado recesso de nosso lar, ao qual deveria reduzir-se nosso mundinho.

Eram ensinamentos que deveriam orientar nossa vida futura, bobagens apenas, vejo agora, de maior ou menor quilate dependendo de quem ditara aquelas normas de uma santa ignorância colossal e que hoje seriam um insulto a inteligência da mais idiota das criaturas, mas que naqueles anos idos no passado nos pareciam completamente possíveis e até sensatas.

Graças a Deus quando me casei já havia perdido o livro e nem me lembrei de colocar em prática qualquer uma daquelas tolices. Maridos se foram e acredito que mais ainda teriam ido, ou então muito mais depressa se eu seguisse as recomendações de nossas freiras.

Não sei se ainda costumam ensinar coisas assim em colégios de freiras, se ensinam as pobres das moças morrerão todas solteiras porque acho que hoje em dia nem o mais machista dos maridos achará graça em ser casado com um autômato que segue as normas para as quais foi programado, em vez de viver com um ser humano.

Mas no colégio era assim, lembro-me do livrinho que era companheiro de um outro, com capa de napa cortada e decorada por nós mesmas, onde anotávamos as receitas com as quais futuramente encantaríamos e faríamos a delícia de nossos maridos.

Pensando nisso... onde é que foi parar mesmo aquele livro de receitas?

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terça-feira, 8 de julho de 2008

A madre superiora

A madre superiora assombrou meus dias e minhas noites por 8 anos. Durante todo o ensino fundamental era a primeira pessoa que eu via, plantada à porta do colégio ou com uma régua em punho ao pé da escada, medindo as saias das alunas para assegurar-se que não estivessem mais que 5 centímetros acima do joelho.

Com os óculos minúsculos, por cima dos quais nos lançava olhares fulminantes por simplesmente existirmos e sua pesada régua de madeira que não hesitava em deitar sobre a mesa com estrondo pavoroso para nossos ouvidos medrosos, era a figura mais ameaçadora, que tanto povoava meus dias na escola, como meus pesadelos noturnos.

Aos quinze anos - já não estudava mais no colégio - eu estava um dia no portão de minha casa quando uma figura trajada de negro e de longas abas esvoaçantes, encarquilhada ao peso de uma horrenda mala marron aproximou-se, tomou fôlego e depositando a mala no chão, cumprimentou-me. Era a madre superiora.

Meu primeiro impulso foi correr, distanciando-me desse fantasma vindo diretamente da infância para me assombrar em plena luz do dia, mas o pavor paralisou-me. Fitei boquiaberta a estranha figura que me sorria.

Vi à minha frente apenas uma velhinha de óculos, encarquilhada pelo peso da idade, sorrindo que nem boba para uma aparvalhada como eu. Falou algo sobre uma viagem, o peso da mala (na certa insinuando que eu a ajudasse a levá-la até o colégio. Pediu um copo dágua.

Em silêncio fui buscar o copo, e foi com muita força de vontade que impedi-me de cuspir dentro antes de entregá-lo à madre. Ela, a exemplo dos outros seres humanos, tomava água. Percebi que suava, algo que nunca notara antes. Que arfava de cansaço e de calor. Era apenas uma velha.

Tagarelou um pouco mais, e vendo que eu não reagia, disse um "então vou andando", agarrou a mala e partiu. Fiquei olhando aquela velha enrugada e curvada arrastando aquele fardo até que virou a esquina. Era apenas uma velha. Não havia mais razão para ter medo. Eu estava livre e a salvo.

(zailda coirano)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Começando com o pé esquerdo

A figura mais assustadora que eu conhecia no Colégio era a madre superiora, com sua eterna e imensa régua de madeira dançando ameaçadoramente nas mãos, seus minúsculos óculos por cima dos quais nos deitava olhares que nos gelavam a alma, pois quando aconteciam isso geralmente significava problemas - e dos grandes. Desde cedo fui comtemplada com uma porção maior da antipatia que esta dedicava de forma igualitária às outras alunas, e imagino que tão subida honra originou-se quando eu estava ainda na segunda série primária.

Criança precoce e rodeada de adultos, nunca tive irmãos para brincar e as escassas visitas de primos não satisfaziam minha necessidade de conviver com outros seres humanos, e como nessa época as crianças eram tratadas mais ou menos como animais de estimação, e na falta de amigos imaginários (porque só fui descobrir a possibilidade de criá-los quando já adulta, portanto tarde demais), voltei minha atenção aos livros a partir de 4 anos.

A princípio apenas via as figuras e ficava imaginando histórias para justificar sua presença entre os caracteres impressos, mas aos poucos percebi que aqueles caracteres eram a parte mais importante e quem os decifrava tinha suas compensações. Foi dessa forma que um dia comuniquei à minha tia que já sabia ler. Tinha então 5 anos.

Claro que ela não acreditou (como sempre, duvidava primeiro de tudo o que eu dizia, só mudando de atitude depois de serem apresentadas provas concretas) e partimos então para a apresentação de provas contundentes do fato. Trouxe-me ela um gibi e ante seus olhos esbugalhados e sua boca estupefata, li até onde julguei necessário para convencer minha tia. Ela convenceu-se e permitiu que eu fizesse algumas "exigências", que eram compensações recebidas sempre que eu me comportava da forma correta ou fazia algo que ela considerasse "digno de orgulho".

Pois que o fato de aprender a ler sózinha foi assim considerado e exigi uma cota semanal de gibis e livros de histórias, no que fui prontamente atendida. Com a recente alfabetização minha tia ficou por alguns meses esquecida de aplicar-me corretivos, de forma que eu me sentia no paraíso, deixada à vontade com minha recente coleção de quadrinhos.

Alfabetizada havia a necessidade de continuar meus estudos e ela encaminhou-me para o colégio, em nossa cidade era o local adequado para instruir e encaminhar as meninas de famílias bem nascidas. Não era o meu caso e eu não entendia bem porque merecera a honra de ser educada dentre as colegas tão bem-postas mas a princípio concordei.

Mesmo tendo apenas 6 anos fui aceita numa sala de primeira série, mas não como uma aluna regular e sim como ouvinte. Como ouvinte logo descobri que tinha meus priviégios: se não quisesse fazer alguma atividade, simplesmente cruzava os braços mas quanto a isso não havia problemas, afinal eu era apenas ouvinte. Podia escolher se faria ou não as provas e acabei fazendo todas, de forma que fui admitida (sob os aplausos de minha tia, que não cabia em si de tanto orgulho) na segunda série.

Éramos uma classe privilegiada porque tínhamos como professora a própria diretora do colégio, a irmã Márcia, que até então me tratava com brandura e carinho. Na certa era uma forma de manter-me na escola, pois tão logo minha matrícula foi efetivada (em caráter permanente) mudou totalmente sua atitude comigo. De terna que era, passou a olhar-me com certa antipatia, que eu não entendia por ser apenas uma criança de 7 anos.

Ao que parece, durante aquele ano em que fui apenas ouvinte estava atravessado em sua goela, pois que passou a dispensar-me um tratamento preferencial em relação às outras colegas. Por preferencial entenda-se que eu era sua aluna preferida na hora das broncas e corretivos, mesmo que não os merecesse.

Quando estou nervosa costumo sorrir, rir ou gargalhar, de acordo com o grau do nervosismo, mas um simples sorriso era para ela como a hora da morte, e passou a classificar-me como "cínica", se é que uma criança de 7 anos lá sabe o que é cinismo. Cinismo em minha opinião é bajular uma criança por um ano e depois brindá-la com a mais solene antipatia.

Pois que num certo dia, durante uma aula de ciências, discorria nossa querida professora e diretora irmã Márcia sobre um assunto qualquer do qual não me recordo em absoluto - mesmo porque não despertou meu interesse na época - enquanto eu me perdia em devaneios. Andando por entre as carteiras ela parou ao lado da minha e deve ter chamado meu nome algumas vezes sem que eu desse sinal de tê-la ouvido, de forma que resolveu me acordar e me aplicou um beliscão no braço direito, que me fez cair estrondosamente das nuvens e voltar à dura realidade terráquea.

Assustada com a inesperada agressão devo ter gaguejado uma resposta qualquer à pergunta que ela me dirigia e à medida que ela se afastava olhei para meu braço e no local do beliscão havia agora uma mancha branca de giz em meu casaco azul-marinho. Fiquei fitando aquela muda prova de que aquilo de fato acontecera até que ela finalmente deu pela coisa. Em seu passeio por entre as carteiras, ao passar por mim sussurrou entre dentes:

- Limpe esse casaco.

Fiz que não com a cabeça, ela parou e eu tremi. Levantei os olhos lentamente e lá estava aquele olhar derramando-se por cima dos óculos numa ameaça muda e indecifrável.

- Limpe o casaco - insistiu ela, e sua voz sibilava por entre os dentes.

- Não - gaguejei. E arrisquei ainda mais - Vou mostrar essa marca para minha tia.

- Espere ao final da aula que quero falar com você.

Ante essa ameaça de morte fui deixando minhas coisas mais ou menos arrumadas, de forma que assim que terminou a mal-fadada aula, desabalei numa corrida desesperada porta afora, temendo que me arrancassem à força a marca que provava a agressão.

Cheguei em casa esbaforida e mal minha tia chegou para almoçar desabei num choro sentido e, mostrando-lhe a marca branca, contei o que tinha acontecido. Minha tia, muito séria, disse que ia à escola conversar com a irmã.

Naturalmente esperei na maior ansiedade possível, do alto dos meus sete anos imaginava que minha tia teria esmagado a madre sob o salto dos seus sapatos quando a vi virando a esquina de volta para casa.

Até hoje não sei qual o teor da conversa, mas a partir desse dia percebi que qualquer tentativa de opor-me à madre seria em vão. Qualquer que tenha sido o rumo da conversa, o que sei é que fiquei um mês de castigo, privada de mesada e dos gibis que eu adorava.

(zailda coirano)

domingo, 25 de maio de 2008

Colando na prova de Geografia

Sempre fui uma aluna um pouco acima da média estudando ou não, e mesmo não sendo a primeira da classe sempre tive um desempenho acima da média. Normalmente era quieta e observadora, tinha uma boa memória, e essas características facilitavam meus estudos de forma que não tinha que varar a noite estudando como algumas colegas mais desatentas.

Mas Geografia era um terror, aqueles mapas não entravam em minha cabeça e até hoje confesso minha falta de habilidade para lê-los. Meu senso de direção fica entre sofrível e péssimo, consegui uma vez me perder em Irapuru, que é um tisco de cidade, que não tem nem 10 quadras de circunferência. Pra dizer a verdade, consigo me perder até no quarteirão de casa, imagine o estrago se me botam um mapa na mão...

Pois era dia de prova de Geografia, minhas notas sempre beirando o vermelho e eu estava lá matutando com minhas apreensões durante o recreio quando vi um ajuntamento de cabeças loiras num canto do páteo. Muita cabeça loira junta dá problema - pensei. E fui lá ver do que se tratava.

As garotas estavam com uma coleçãozinha interessante de papéis e canetas, umas anotando dados enquanto outras febrilmente os recitavam.

- O que vocês estão fazendo? perguntei inocentemente, já sabendo de antemão que boa coisa não poderia ser.

- Cola - respondeu lacônica e sucintamente a Telma, a líder da turminha de desandadas.

- Como assim "cola"?

- A gente anota tudo o que vai cair na prova, anota na perna, em papéizinhos, no estojo, dentro da caneta... depois na hora da prova e gente copia e pronto!

Naquele momento fez-se a luz diante de mim! Nada mais do terror das notas baixas, nada mais das broncas e cortes de mesada! Aquilo pra mim pareceu o supra-sumo da praticidade e vinha de encontro às minhas mais profundas necessidades do momento. Passei o resto do recreio anotando dados febrilmente, ora na perna, nos braços, em pedaços de papel. E aos poucos ia aperfeiçoando técnicas "colativas", enfiando pequenos pedaços de papel nas dobras da saia, prendendo-os no anel... O sinal que anunciava o fim do recreio pôs termo à nossa expedição geográfica ao sub-mundo da desonestidade e partimos, confiantes, para o teste mensal.

Sentada diante da prova eu via minhas colegas em movimentos suspeitos e olhares lânguidos e disfarçados para seus apetrechos de auto-ajuda. Tentei também usar os meus, mas as mãos tremiam quando peguei o primeiro papel. Droga! Caiu no chão, tentei espichar o pé, alcancei-o e coloquei-o embaixo do sapato. Quem sabe a resposta estivesse em meu braço? Mas não havia jeito, a freira me olhava fixamente, talvez suspeitando de meus movimentos anteriores. Tentei permanecer calma e baixei a cabeça, decidi ignorá-la.

Fui levantando a saia aos poucos, tentando vislumbrar alguma coisa útil naquele emaranhado de frases desencontradas, aos poucos compilando dados que estavam rascunhados em minha pele. A freira abandonou seu posto atrás da mesa e começou a dirigir-se para o meu lugar. Frio no estômago. Tentei disfarçar e colocar a saia no lugar mas temi que o movimento despertasse sua atenção.

A freira vinha em passos lentos mas eficientes em minha direção, senti que um tremor tomava conta de todo meu corpo, os dentes começaram a bater uns nos outros, comecei a suar frio. Enquanto a freira passava por entre as carteiras não tirava os olhos de mim, que à essa altura já tremia mais que vara verde, já estava quase tendo um ataque de epilepsia...

A freira parou ao meu lado. Eu estava ligeiramente arqueada para a frente, a saia um tanto levantada, as pernas ligeiramente abertas para facilitar a leitura por entre elas. A freira deu-me um "croque' na cabeça e resmungou:

- Senta direito. Isso lá é jeito de uma menina sentar?

Virou as costas e voltou a seu lugar. Nas veias, o sangue começava a correr em seu ritmo normal novamente. As mãos lentamente conseguiam segurar a caneta e minha cabeça começava a funcionar de novo. Um suspiro de alívio saiu de meus lábios e endireitei-me na carteira. Olhei a prova à minha frente, mais da metade sem fazer. Nesse momento tomei uma firme decisão. Levantei-me, fui até a mesa e coloquei minha prova sobre ela. Depois saí da sala, aliviada.

Sabia que a nota não seria lá aquelas coisas, talvez eu perdesse a mesada por um mês, quem sabe... Havia muitas incertezas em minha mente nesse momento, mas de uma única coisa eu tinha certeza clara, plena, total: colas não eram para mim. Fosse qual fosse o resultado de meus testes e provas dali pra frente, eles seriam sempre o resultado que eu conseguira honestamente, essa vida de desonestidade decididamente não era para mim.

(zailda coirano)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Claustrofobia

Eu sempre fui "metida", de nariz empinado, muito consciente de minhas característica pró e contra. De humilde eu não tinha nada, em relação às minhas colegas de colégio, muito mais bem-nascidas e criadas em berço de ouro.

Para mim sua superioridade em termos monetários nunca me acenou com superioridade intelectual e nem lhes garantia nenhum tipo de concessão ou consideração especial, além dos que já lhes eram conferidos pelas freiras do colégio.

Lembro-me que a madre ia à nossa classe e comentava:

- O pai da Fulaninha doou uma novilha para nossa quermesse! Uma novilha! - e afagando ternamente os cabelos da colega que sorria, orgulhosa, encerrava - Diga a seu pai que nós todas do colégio (e lançava um olhar ameaçador por cima de nossas cabeças, no caso de por elas rondar a idéia de contestar nossa participação em tão solene e babado agradecimento) agradecemos do fundo de nosso coração.

Agradecimento assim tão explícito, solene e teatral sempre me causou engulhos e cresci deplorando esse tipo de atitude de reverência ao dinheiro. Mas comigo não tinha nada disso, não. Fosse qual fosse o poder aquisitivo do pai da colega, polpuda como fosse sua conta bancária, o tratamento que eu dispensava a ela variava de acordo com a simpatia que eu sentia ou com a admiração ou desprezo que suas virtudes ou falhas de caráter me produziam.

E assim - metida a besta - fui crescendo naquele meio. Ignorada por umas, aceita por outras e ainda odiada por outras tantas, eu nunca dei bola pra torcida. Não era "sheer-leader" nem nada, então elas que guardassem suas simpatias e antipatias para corroê-las quando botassem a cabeça de longos fios loiros, lavada com xampu
pago a preço de ouro, em seus fofos travesseiros de plumas importadas.

Vai que um dia fui ao banheiro e lá estavam alguns desses "desafetos" que me olharam de banda assim que entrei. Indiferente à torcida contrária, desfilei de nariz empinado até o toalete (ou "casinha", termo mais ameno do qual fazíamos uso no colégio) e antes de sair (ou tentar) ouvi umas risadinhas e logo depois as danadas retiraram-se às carreiras.

Era o final do recreio e éramos as últimas a freqüentar a "casinha", de forma que quando saíram fiquei só. E a porta não abria. Haviam me trancado por fora, as inconseqüentes. Eu me esforçava para abrir a porta, que nem esboçava uma reaçãozinha que fosse.

Claro que eu não daria a elas o prazer de gritar ou chorar, implorando para que me libertassem, mesmo porque eu sabia que não se contentariam com menos do que súplicas desesperadas e promessas de que jamais as afrontaria de novo.

Para não me humilhar fazendo o que esperavam que eu fizesse, passei lá o restante do tempo que para o final das aulas, até que uma boa alma que resolveu ir ao banheiro antes de ir pra casa, por fim me libertou.

Durante o tempo que passei trancada tive taquicardia, suores frios, tonturas, medo e ódio absolutos. Claro que depois dei um jeito de me vingar dessa covardia, mas por mais que tenha feito as marcas ficaram. Nunca mais me senti confortável fechada em qualquer lugar de onde houvesse a mais remota possibilidade de não poder sair quando eu bem quisesse. A claustrofobia foi a marca que ficou, e que carrego até hoje, legado de minhas colegas inconscientes, de contas bancárias enormes, mas com zero de bom-senso.

(zailda mendes)

quinta-feira, 13 de março de 2008

Dogmas

Estudando em colégio de freiras tínhamos que ter orações na ponta da língua, não faltar às missas e à fila da comunhão, preservar a virtude e a verdade, etc, etc... Em suma, éramos obrigadas a manter nossas pobres e inocentes almas a salvo das garras do demônio ou nos veríamos às voltas com as garras das freiras, e nem sei o que era pior. Na época para nós as das freiras eram infinitamente piores e mais dolorosas, sobretudo porque estavam mais próximas e com um telefone ao alcance das mãos. Bastava uma delas discar o número de nossa casa ou do serviço de um de nossos progenitores e milagrosamente lá se iam todas as parcas regalias de que desfrutávamos: adeus mesada, adeus saídas à tarde para fazer trabalhos nas casas das colegas (ocasiões em que aproveitávamos para raspar as pernas e tirar sobrancelhas escondido de nossos pais), nada de bailinhos ou festas de aniversário no final de semana.

Claro que conduzindo a coisa dessa forma tínhamos um conhecimento profundo de epístolas e parábolas e nossa fé no poder do vinho e pão transubstanciados em sangue e carne de Cristo era inabalável. Não que não acreditássemos naquilo, simplesmente não nos atreveríamos a duvidar sequer em nossos mais secretos pensamentos.

Pois que um belo dia a nossa querida madre superiora veio à nossa sala a troco de dar um recado ou coisa que o valha e resolveu sabatinar as alunas, nesse semestre entregues aos cuidados de uma jovem freira, que ainda não tinha provado por A + B sua eficiência em técnicas de tortura e lavagem cerebral. Tínhamos consciência de que ela seria sabatinada também, e de acordo com a presteza de nossas respostas seria julgada com mais ou menos clemência.

A freirinha torcia as mãos, aflita, sentada em uma carteira junto a nós, e íamos respondendo à enquete da madre. Ela não se dava ao trabalho de fazer perguntas individuais, ia apenas perguntando e solicitando às parcas e trêmulas mãos que se levantavam que respondessem. Confiava ela plenamente em seu poder de pastorear rebanhos de criaturas inocentes para agir assim. Por seu lado a freirinha nos olhava, aflita a cada mão que se levantava e era solicitada a dar sua resposta. Isto causava-lhe um ligeiro estremecimento, talvez temendo alguma resposta não condizente com o local e a postura que era insistentemente cobrada de nós.

- Era Jesus mesmo filho de Deus? - perguntava a madre, e lá uma dúzia de mãos acenavam, solícitas e aflitas para livrarem-se logo do peso do saber. E quando vinha a resposta esperada, a madre dava um sorrisinho de aprovação em direção à freirinha, que abaixava a cabeça, momentâneamente aliviada.

E assim foram se seguindo as perguntas e respostas, tranquilamente aceitas pela madre, que já ia se retirando quando resolveu fazer mais uma pergunta, dessa vez no geral:

- Quem acredita na virgindade de Nossa Senhora ao dar a luz a Jesus levante a mão.

E logo dezenas de mãos se ergueram, hirtas, à espera da contagem mental da superiora. Mas de repente sua sobrancelha se arqueou e seus olhos lançaram chispas por cima dos óculos. Estremecemos todas e olhamos na direção daquele olhar ameaçador. Um par de mãos descansava, indolente, sobre a carteira de sua dona. Ah, heresia das heresias, quem era a mortal que atrevia-se a duvidar da virtude da mais digna e elevada representante da Igreja Católica?

A aluna parecia distraída e a madre imaginou que se tratava apenas de um erro menor, talvez a aluna não tivesse ouvido a pergunta. Inquiriu, ameaçadora:

- Você não vai levantar a mão? - e já a pesada régua de madeira rodava em suas mãos, nervosamente.

- Não, acho impossível ela continuar virgem depois de Cristo nascer porque naquele tempo não havia cesariana.

A desfaçatez da resposta quase fez os olhos da madre, da freira e os nossos próprios pularem das órbitas. Como? Poderíamos confiar em nossos ouvidos? Todas as cabeças voltaram-se na direção da aluna. A madre lhe disse, em tom de voz apavorante para nós, mas que não pareceu intimidar nem um pouco à aluna:

- Levante-se e diga em voz alta na frente de todas nós que não acredita na virgindade da VIRGEM Maria. - solicitou, dando uma ênfase aterradora e cheia de ameaças insuspeitadas à palavra "virgem", como que a provar a obviedade da pergunta e a obrigatoriedade da resposta.

A aluna sustentou a ameaça velada e repetiu aberta, clara e desafiadoramente o que lhe fora pedido. Pairou um silêncio sepulcral sobre nós, ao final do qual a madre levou-a para sua sala e não a vimos mais até que voltou no dia seguinte.

Tinha um ar de prisioneiro que libertara-se tarde demais da prisão, quando já seu espírito sucumbira aos rigores e horrores que fora obrigado a partilhar com ratos e moléstias. A menina tinha a aparência de quem fora subjugada pela força, cujo espírito fora obrigado a curvar-se ao poder do mais forte.

Nunca mais ela foi a mesma. Afastou-se pouco a pouco das amigas, e enquanto conversávamos ela ficava cismando em seu canto, até que no final nem mais nos dávamos conta de sua presença. O episódio foi esquecido, mas dentro dela uma chama se apagara e outra, mais forte e poderosa acendera-se em seu lugar. Por vezes eu via no brilho de seus olhos um rastro dessa nova chama, a cada vez que ela era obrigada a encarar uma de nossas tutoras espirituais. Em silêncio, todas nós entendíamos que força era essa que nascia e em nosso interior também sentíamos, cada uma a seu modo, essa nova chama brilhar.

(zailda mendes)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A melhor da turma

Logo que passei pelo portão do colégio fui atropelada pela Anália, que era a mais estressadinha da turma. Ela me segurou pelo braço e parecia desesperada. Suas pupilas estavam dilatadas e os olhos pareciam querer saltar das órbitas, de tão esbugalhados. Mal pude entender quando ela me perguntou, a voz saindo junto com meio litro de baba, que ela costumava expelir abundantemente quando estava muito nervosa:

- Estudou pra prova?

Prova, que prova? - pensei eu. E se a Anália estava nervosíssima eu estava apavorada quando balbuciei:

- Não estou sabendo de prova nenhuma.

- A prova bimestral de matemática!

Aquilo foi como um bombardeio em meu estômago, que se contraiu dolorosamente sobre o parco desjejum que eu tomara naquela manhã. Começaram a tremer-me as pernas, os braços, os dentes se chocavam uns nos outros e eu mal podia conter o pavor. Fui obrigada a confessar às colegas aflitas que não poderia ajudá-las com meus escassos conhecimentos dessa vez.

A prova seria depois do recreio, de forma que entre uma aula e outra eu dava uma passada d'olhos no caderno, tentando decorar as complicadas fórmulas e entender aquelas famigeradas cifras. Quando o sinal que anunciava a temida aula tocou, nos entreolhamos assustadas antes de partir para a sala de aula, em silêncio e de cabeça baixa, como o boi quando vai para o matadouro.

Na prova fiz o que pude e pelo que pude estudar até que estava fácil, mas eu não tinha muitas esperanças. Depois da aula comentamos, desalentadas, como tínhamos nos virado durante aquele amargo episódio. Fomos para casa, cabisbaixas, esperando o dia do anúncio das notas e do resultado do exame.

Enfim chegou o temido dia, o professor (que era um dos raros que tínhamos, em sua grande e esmagadora maioria eram freiras) entrou com um calhamaço de provas corrigidas na mão e isso acabou com nossas esperanças de que ele tivesse sofrido um acidente ou que sua casa tivesse ardido em chamas - queimando assim aquela papelama inútil.

Antes de dar as notas ele começou um discurso que ouvimos com o coração na mão e absolutamente paralisadas. Nossos piores temores se concretizavam:

- Como o resultado das provas foi muito abaixo do esperado, vou entregar as provas e dar as notas em voz alta, porque aqui parece que ninguém estudou nada.

E começou a ladainha:

- Fulana... zero. Beltrana... zero.

E assim ia chamando as alunas e a cada nome e a cada prova era um zero. Logo no princípio aquilo foi aterrador, mas à medida em que os zeros iam se sucedendo algumas alunas começaram a dar risinhos, já se conformando com a situação.

Quando a pilha já estava quase acabando, chamou nossa "crânio" em matemática:

- Agnes... quatro.

Que horror, ela conseguiu um quatro - pensei. E então me dei conta que ainda não recebera minha prova, que seria a última. Mas antes nosso professor resolveu terminar o sermão que iniciara.

- Eu ia anular essa prova, mas depois mudei de idéia por causa dessa prova - fez questão de deixar claro.

Por causa dessa prova. E essa frase me assombrou os sonhos durante muitas noites de minha vida.

Ainda estávamos lá, pasmas, sen entender nada quando ele então trovejou:

- Zailda... dez.

O caminho de minha carteira até a mesa do professor foi um dos caminhos mais difíceis que já percorri até hoje em minha vida. Enquanto avançava na direção da mão que me estendia com aquele maldito pedaço de papel, milhões de coisas passavam por minha cabeça. E principalmente que por eu ter tirado dez a prova não seria anulado, portanto minhas colegas todas ficariam com nota zero no boletim.

Essa foi a primeira vez que um sucesso meu prejudicou outras pessoas, pessoas essas que eram minhas amigas, e que jamais entenderam como eu pude tirar um dez se disse que não sabia nada e portanto não as ajudei a estudar antes da aula. Se alguma delas estiver lendo essa crônica, espero que agora entenda e, mesmo que tardiamente, me perdoe.

(por Zailda Mendes)

sábado, 26 de janeiro de 2008

Eu e minha boca grande

Já te aconteceu de dar um fora daqueles, mas daqueles bem fora mesmo, daqueles que a gente depois não sabe como consertar? E vai explicar depois, que não é bem isso que a gente quer dizer...

Eu já disse aqui que falo demais, e segundo minha saudosa avó, quem fala demais dá bom-dia a cavalo. Pois é, dá bom-dia, boa-tarde, boa-noite... Mais de uma vez eu disse coisas que depois não tinha como consertar. E fora é coisa do capeta, se você tenta consertar aí é que fica feio mesmo. E normalmente nascem daquelas conversas que nem tem razão de ser, perfeitamente dispensáveis.

O fora mais antigo que consigo me lembrar, que deve ter se dado logo no início de minha carreira de "forista", foi na quinta série. Estávamos eu e uma colega de escola, enorme ela por sinal, muito maior que todas da minha classe, um verdadeiro monstro, sentadas no banco de reserva na hora da Educação Física, assistíamos ao jogo, quando o seguinte diálogo se passou:

- Jogam bem as meninas, né?

Como ela nunca me dera bola, apressei-me a concordar, claro que jogavam muito bem sim.

- E o que você acha da Marisa?

Naturalmente queria saber das qualidades técnicas da garota, mas a tonta aqui que tava com a tal Marisa atravessada (a guria não me passava) e com a santa honestidade que Deus me deu (em má hora, diga-se de passagem):

- Ah, uma vagabunda!

E ante os olhos atônitos da colega dois-metros-maior-que-eu-tanto-em-altura-como-em-largura, fui desfiando o que eu realmente achava da dita cuja. Infelizmente, empolgada com a descrição das "qualidades" da mencionada jogadora, nem percebi os olhos dela, esbugalhados de espanto. Quando acabei de falar ela, lívida, me explicou:

- Marisa é minha sobrinha, sou irmã caçula da mãe dela. E me espere na saída da escola.

Fiquei ali, atarantada, perguntando que mal eu fiz pra Deus, imaginando alguma doença, qualquer coisa que pudesse ser forjada a fim de ir embora mais cedo pra casa, adiando assim o tal encontro "na saída da escola".

Bem, não deu. Na saída a tal colega me esperava com seu uniforme que mais parecia uma barraca de camping de tão grande que ela era e uma cara de botar medo aos capetas no inferno.

Surra? Claro que levei, e das boas, e mais ainda teria apanhado se não tivesse aproveitado um momento de hesitação dela (foi tomar fôlego pra me bater mais ainda) e seu tamanho avantajado e não tivesse escapado passando por debaixo das pernas dela. E corri, hein? Meu Deus, como eu corri...

Depois desse, dei muitos outros foras, de maior ou menor gravidade, claro que com consequências (físicas, pelo menos) menores e menos doloridas. Mas eu não sou a campeã, tenho uma amiga que se poderia chamar de "Rainha dos Foras". E não se emenda, dá um atrás do outro.

Há uns anos, na Festa do Peão da minha cidade, ocasião em que todas as entidades armam lá sua barraca pra vender alguma coisa e arrecadar fundos, essa prezada amiga dançou e bebeu a noite toda, lá pelas tantas, já meio "alegre", chegou numa dessas barracas, bateu com a mão na mesa e exclamou, em alto e bom som:

- Quero uma cerveja, mas que seja uma cerveja bem gelada, de cerveja quente eu já to cheia!

Todos nas mesas vizinhas pararam com seus copos no ar, olhando-a. Ela não entendeu nada até que se aproximou dela uma mocinha, e em voz mais ou menos baixa lhe disse:

- Moça, aqui é a barraca da Liga Anti-alcoólica. Só temos refrigerante. A senhora não quer uma Coca-cola?

Ela não queria. Saiu de lá aos trambolhões, procurando um buraco pra se enterrar.

(escrito por Zailda Mendes)

Vocação religiosa

Venho de uma família católica e fervorosa, e além de ter estudado muitos anos em colégio de freiras fui criada por uma tia solteirona (quase) convicta - e digo quase porque muito mais tarde casou, coitada! - e uma vó pra lá de brava. Minha vida era do colégio pra casa e vice-versa. Aos domingos, missa. Sábado, missa. Não-sei-qual-sexta-feira-do-mês, missa. E tome missa!

Claro, frequentando tanta missa lá pelos sete anos eu já decidira o que ia ser quando crescesse. Um dia cheguei pra minha tia e disse, olhos baixos e desenhando uma figura imaginária com o pé no assoalho do quarto dela: "Tia Cida, quando crescer quero ser freira."

Nossa, foi uma glória, já correu minha vó a anunciar às vizinhas a santa vocação da neta. Deve ter sido mesmo um alívio, "criar filha dos outros não é fácil". Nada de namoricos, nada de gravidezes indesejadas, nada de dores de cabeça! Ia ser freira, pronto. Estava tudo resolvido, nada de percalços e surpresas (pra lá de) desagradáveis.

E durante meses não se falou em outra coisa. Tinha visita em casa eu já sabia: lá pelas tantas me chamavam (porque criança não ficava junto com visita dando palpite e fazendo gracinha, não era essa bagunça de hoje não, senhora!) e pediam: "Fala aí pra Dona Fulana (alguma gorda chata com três ou quatro filhas que espichavam o olho pra avaliar o que sairia da boca dessa magricela aqui) que é que você vai ser quando crescer."

Eu já incorporara totalmente o papel e as futuras responsabilidades, de forma que baixava os olhos contritos e respondia numa voz submissa que toda freira deve ter (achava eu) e lascava de um fôlego só: "Vou ser freira."

A gorducha da Dona Fulana arregalava os olhos na mais profunda admiração e depois espichava um olhar de inveja pra minha tia que colocava a mão no peito inchado de orgulho e depois olhava pras filhas dela e soltava um profundo suspiro de resignação.

Isso se repetiu até o dia em que fomos à missa eu e minha tia, e nos sentamos no primeiro banco, como sempre. Antes de começar a missa ela me perguntou: "Já pensou como vai ser sua vida de religiosa?" Nisso entrava o padre pra rezar a missa e eu, com os olhos nele.

Acontece que esse padre chegara há alguns meses à nossa cidade, coincidentemente bem à época de minha súbita conversão à vida religiosa. Era um rapaz lá pela casa dos vinte, alto, moreno, profundos olhos verdes e um sorriso encantadoramente lindo.

E eu respondi: "Sim, vai ser ótimo. Eu e padre Sicrano nos casaremos e teremos muitos filhos." Minha tia parou de acompanhar a missa que começava e me perguntou, duvidando do que tinha ouvido: "Como? Casar com o padre? De onde tirou essa idéia absurda?"

Saí do transe em que estava assistindo ao padre que rezava divinamente uma missa e perguntei: "Por que?" E ela: "As freiras não casam com os padres. Permanecem solteiras como a titia."

Bem, nesse dia caiu por terra a mais nova vocação religiosa da cidade. Se os padres não se casavam com as freiras, então eu ia ser freira pra que? E assim tive minha primeira desilusão, aos 7 anos de idade.

(escrito por Zailda Mendes)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Como aprendi a nadar

Conhece alguém que tem bronquite? Mas daquelas de arrebentar mesmo, que quando a pessoa respira parece que tem um gato desses novinhos dentro do peito, tamanha é a chiadeira? Pois era dessas mesmas que eu tinha, quando dava a crise eu tinha que dormir com uma pilha de travesseiros, sentada, porque senão não conseguia respirar. E tentaram comigo tudo quanto era tratamento: os de choque, os de injeção (daqueles que você toma injeção um dia sim e no outro também), os experimentais, os populares (leite de égua), os espirituais (novena pra sarar), e sabe-se lá que mais foi tentado. Mas tudo em vão. Quando a crise vinha era de amargar, febrão danado, sensação de asfixia e uma tosse que deus-me-livre.

Aos 12, 13 anos o médico achou que já se havia tentado e tudo e que agora meu corpo é que tinha que vencer a doença, então pediu à minha tia, aquela santa senhora que fazia tudo por mim, talentosíssima em chantagens emocionais, que ficasse sócia de um clube, desses com piscina, pra que eu aprendesse a nadar. Nadando eu desenvolveria a caixa toráxica e...

Quando ouvi isso quase sarei da crise na hora. Devo ter arregalado tanto os olhos que por milagre não pularam das órbitas. Piscina? Clube? Ai meus sais que eu quase tive um desmaio de tanta emoção. E cobrei tanto o tratamento que em poucas semanas já estava no clube. E de biquini!

Como eu fiz pra convencer minha talentosa e prestimosa tia a me comprar um biquini em vez de um maiô é outra história e bem mais longa que essa. Não é por nada não, caro leitor, mas não era só minha tia a talentosa da família...

Mas como ia dizendo, lá estava eu no clube, a piscina à minha frente, aulas com o professor de natação... mas quem disse que eu aprendia? Era uma tortura a hora da aula, ainda bem que durava apenas uma hora. Em matéria de natação eu era como um peixe: se caísse na água não saía sozinha, tinham que entrar pra me tirar.

Mas como o dia tem 24 horas, das quais eu passava o máximo possível no clube, e a aula durava uma horinha apenas, isso não me abalou. Logo descobri outros encantos no tal do clube. E não é que conheci um moreno alto, atlético, olhos verdes e campeão de natação? Em vez de aprender a nadar eu estava mais pra pescar. Joguei a rede e deu certo. Em poucas semanas estávamos namorando.

Ah, pode escancarar a boca à vontade de tanta admiração, se você está admirado caro leitor, admiração maior era a minha! Eu olhava para aquele deus grego e tinha que me beliscar o tempo todo pra ter certeza de que não estava sonhando. E logo já estava frequentando também os bailinhos de quinta e domingo.

Aprendi a dançar e comecei a sair à noite, já ia ao cinema (mas só na domingueira, que era a matinê de domingo), e quando eu ia embora o namorado me levava em casa! Nem precisa dizer que eu estava nas nuvens, tanto que nem ia mais às aulas de natação.

Você já deve estar imaginando que minha tia descobriu que eu estava namorando e "matando" a aula de natação, né? Bem, que ela descobriu sobre o namoro, descobriu mesmo, só que bem mais tarde. Quanto às aulas de natação, não teve como.

Um dia eu estava dando a volta na piscina (que era só o que eu sabia fazer), mas bem agarrada à borda, já que disso dependia minha vida, quando um engraçadinho me deu um "caldo", mas daqueles bem dados, daqueles em que você não só afunda a cabeça de seu semelhante na água como também fica segurando-a lá embaixo. Foi quase tentativa de homicídio, porque além de não saber nadar também não sou peixe e não respiro dentro dágua.

O susto foi tão grande que pra me libertar saí nadando. E nadando cachorrinho, veja só.

(por Zailda Mendes)

sábado, 19 de janeiro de 2008

Levada da breca

Eu devia ter lá pelos cinco anos de idade e conta minha tia que eu tinha aprontado uma "arte", daquelas que criança não faz por maldade, é o natural delas, mas que os adultos vão logo fazendo tempestade em copo dágua. Não que eu fosse um anjo, nunca fui santa, era o que se costumava chamar no meu tempo "levada da breca".

Meu pai sempre perdoou todas as traquinagens dos filhos (principalmente das filhas) e quando minha irmã mais nova abria a boca a chorar numa manha que não tinha mais fim, suspirava, compreensivo:

- Ah, essa menina é tão sensível!

E as tias todas podiam esquecer as ganas de nos tacar puxões de orelha e croques que sonhavam em nos aplicar. Pelo menos na presença de meu pai, pois pra ele tudo o que eu aprontava nada mais era que demonstração da minha criatividade. Se eu abria um buraco no chão com a colher do faqueiro novo e enterrava a colher pra não ter que lavá-la (e isso confesso aqui, hoje, que fiz muitas vezes), olha que menina criativa! Tantas e tantas colheres sumiram até que fomos pegos, eu e meu primo Kico, bem no auge de uma de nossas saídas criativas pra evitar trabalho duro que levamos uma bela surra de minha avó. Com ela criatividade infantil se curava no chicote. E com ela nem meu pai retrucava.

Pois numa fase criativa dessas, conta minha tia que aprontei uma das boas, infelizmente no momento a memória não me permite ser mais específica como talvez mais aprouvesse ao gosto dos leitores, e ela então chamou-me ao seu quarto e começou aquele senhor sermão:

- Mas muito bonito! Como é que você pode fazer uma coisa dessas? Bla-bla-bla... Papai do Céu vai ficar muito triste com você...

E ela jogava todas as já manjadas chantagens emocionais, para as quais sempre demonstrou incomparável talento e eu, ali, firme, nem um tremorzinho pra demonstrar arrependimento.

- A titia faz tudo por você e você apronta uma dessas. Estou muito decepcionada com você!

A essa altura conta a titia que sempre fazia tudo por mim que eu desatei num choro sentido, desses de soluçar. Animada com o resultado do falatório todo, ela perguntou:

- Ah, então se arrependeu da coisa que fez e agora está chorando? Quer pedir desculpas?

- Não - conta a titia que eu respondi, entre amargos soluços - é que eu não sei o que é "decepcionada".

(por Zailda Mendes)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A missa da sexta-feira

Estudando no colégio toda primeira sexta-feira do mês éramos levadas em bandos por uma irmã até a capela do colégio para assistir uma missa. Devíamos todas confessar e comungar, disso dependia a salvação de nossas pobres almas católicas, e portando deveríamos ir para o colégio em jejum.

A missa era mais comprida que as demais, pelo que me lembro, e ficávamos mais de uma hora e meia num senta-levanta-ajoelha e cantando hinos, recitando ladainhas, com o estômago rangendo e esfregando nas costelas de tanta fome.

A certa altura já ansiávamos por botar alguma coisa na boca, nem que fosse uma hóstia, transubstanciada no corpo de Cristo. Qualquer coisa servia, e já que estávamos ali pra isso mesmo...

Pois que nessa manhã em particular já nos preparávamos para nos enfileirar, contritas e de cabeça baixa rumo ao altar para aplacar um pouco a fome de nosso corpo e de nossa alma (segundo as irmãs) com a hóstia duplamente bendita, quando a Elisa foi escorregando, escorregando e estatelou-se no chão. Caiu como um saco de batatas, com um estrondo que ecoou pela capela silenciosa.

Um momento de paralisia e terror e logo duas freiras correram a acudí-la, mas qual, ela nem se mexia. Aquilo era novidade e nos entreolhamos por entre as rendas dos véus, mas logo uma freira nos fez sinal que nos apressássemos a entrar na fila da comunhão e cuidássemos de nossa alma, deixando que elas se encarregariam do corpo da colega que literalmente jazia no chão frio de piso encerado.

Como sempre acontecia em ocasiões como essa a Elisa foi levada para casa pelos pais e nós ficamos ardendo de curiosidade à espera de notícias. Que vieram apenas dois dias depois, quando ela finalmente foi liberada para voltar às aulas.

O tombo sensacional ocorrera porque ela estava em jejum, desmaiara de fome. Mas isso não tirou para nós o brilho da ocasião. Em nossos momentos de folga imitávamos o tombo colossal. Em casa eu tentava cair durinha como ela, mas infelizmente nunca consegui dominar perfeitamente essa arte de cair como um pedaço de pau estatelando-me no chão.

Algumas colegas aperfeiçoaram essa arte e seguiram praticando-a, com mais ou menos talento teatral, ora momentos antes de provas para as quais não haviam estudado, ora em situações delicadas ou difíceis. Seja como for, dali pra frente nossa classe ganhou um colorido especial com as alunas especializadas nessa fina maneira de "sair de cena", para desespero das freiras e gáudio das colegas presentes, que só não aplaudiam para não avacalhar com a performance.

Tudo seguia assim sempre igual, vez por outra com uma de nossas talentosas aspirantes a atrizes esborrachando-se no chão, quando nossa querida diretora veio certa manhã substituir uma professora durante uma prova. Poucos minutos antes de iniciar-se o pavoroso evento ouvimos um ruidoso baque e vimos nossa colega Tânia esborrachar-se no piso, como vez por outra vinha acontecendo.

A freira aproximou-se dela que jazia, imóvel. Nem um músculo se mexia, quase não respirava. A freira a cutucou com o pé, abaixou-se e tomou-lhe o pulso e depois, dirigindo-se a uma das semi-internas, pediu em alto e bom som:

- Corra até a lavanderia e peça à irmã Teresa uma brasa. Quando a pessoa desmaia não há nada melhor do que encostar-lhe uma brasa ao umbigo para que acorde.

Ficou provado que a medicação era de fato eficiente, pois não houve nem necessidade de sua aplicação, bastando apenas mencioná-la que a aluna voltou a si imediatamente. O remédio foi de fato tão eficiente que a cura foi completa e total, espantosa mesmo. Nunca mais ninguém sofreu desmaios em nossa classe.

(por Zailda Mendes)

Prova de matemática

A tensão pairava no ar, a atmosfera era tão densa que quase se poderia cortá-la com uma faca. Nós estávamos todas quase imóveis, perfeitamente enfileiradas e emperdigadas enquanto a irmã Salete consultava suas anotações em sua mesa, vez por outra mexendo-se na cadeira ou lançando um olhar perscrutador por cima de nossas cabeças. Era dia de prova de matemática. Era o horror dos horrores e nos debruçávamos silenciosas, frente à folha cheia de algarismos e cifras aterradoras.

Algumas atreviam-se a lançar um olhar por cima dos ombros das colegas, mas o pavor de ser flagrada era maior do que a vontade de colar. Raramente alguma colega mais afoita gabava-se de tal feito, e era olhada por semanas com ar de admiração e inveja pelas outras. Dava status colar no colégio.

Nesse dia em particular irmã Salete estava absorta em suas contemplações quando Anália começou a se remexer na carteira e um zum-zum-zum percorreu a sala. Eu, entretida que estava com meus cálculos não fazia idéia do que estava se passando, e ao levantar a cabeça dei com o olhar da freira que já se erguera por sobre os óculos e se espalhara pela sala toda como uma metralhadora giratória, tão ou mais aterrador que esta. Trêmula, abaixei rapidamente os olhos para a prova, já que colar ou olhar algo que não fosse a própria prova era quase que um pecado mortal, com uma penitência à altura.

Tão logo a freira baixou de novo os olhos para suas notas ouviu-se um murmúrio e um som que se assemelhava a um leve ressonar. Na sala grande e arejada, em silêncio mortal e amedrontado, poderia ouvir-se um alfinete cair no chão primorosamente encerado e lustrado pelas alunas semi-internas, que desfrutavam da boa educação e da companhia das ilustres filhas bem-nascidas da nata da sociedade araçatubense à custa de serviços gerais.

A Telma, normalmente tão falante, atreveu-se a pigarrear e assim que a freira a olhou, balbuciou:

- Há algo errado com a Agnes...

A irmã Salete levantou da cadeira o corpanzil imenso, não sem um certo esforço que a idade e as guloseimas extras lhe impingiam e aproximou-se da carteira da Agnes, que estava literalmente com a cara enfiada na prova. Chamou-a algumas vezes e por fim chacoalhou-a pelo ombro e nada. Sentenciou:

- Ela está dormindo.

E escalou logo duas alunas das mais fortes para arrastá-la até a sala da direção, de onde seria levada para casa.

Ficamos ansiosas e nos entreolhávamos assustadas, dormir durante a prova? Como alguém poderia ter tamanho sangue-frio e tal descaso com evento tão importante? Era tudo um mistério, nunca algo assim acontecera em toda a história do Colégio Nossa Senhora Aparecida.

Somente no dia seguinte soubemos pela boca da própria Agnes. Ela tomara Coca-cola e café a noite toda para se manter acordada e estudar, e durante a prova, quando o efeito da beberagem passou, simplesmente adormecera e não houve cão que a acordasse.

Claro que isso foi punido à altura, além do zero na prova - inapelável - a coitada da Agnes passou a ser encarada como aluna-problema, que se "drogava" e era evitada por algumas como se fosse portadora de um vício ou moléstia contra o qual não havia cura. Para outras ela passou a ser vista como líder, alguém a se imitar. Tanto umas quanto outras creio que sentiam uma secreta inveja dela.

De qualquer forma, nossa ilustre diretora tratou de encomendar a um médico da região que nos fizesse exames "anti-doping" periodicamente e nos ministrasse quinzenalmente aulas a respeito de tóxicos - como evitá-los, e a partir daquele dia éramos "revistadas" antes de entrar na classe para que se certificassem de que não levávamos nenhuma substância "proibida".

(por Zailda Mendes)

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