segunda-feira, 15 de abril de 2013

O trauma da cocó

Cristiane teria entre dois e três anos quando a levei pela primeira vez à cada da avó, no interior de São Paulo. Criada na Grande São Paulo, bem próxima à Selva de Pedra onde animais e plantas eram apenas figuras em seus livros de histórias, logo se apresentaram alguns problemas de adaptação, que não chegaram a empanar o brilho do feriado.

A cada dez minutos ela vinha do quintal e pedia que lhe lavássemos as mãos, que estavam cheias de terra. Garota urbana ela não conseguia suportar a substância estranha, o que nos deu a mim e à sua avó a oportunidade de boas risadas. Também se incomodava com as moscas, já que raramente as víamos aqui e lá eram “parte da atmosfera”.

Minha mãe, como boa senhora criada no sítio, tinha lá umas galinhas que criava no quintal. Cristiane encantou-se com elas e correu a tarde toda atrás de uma galinha mais mansa, que até lhe permitiu pegá-la ao colo algumas vezes e que ela apelidou carinhosamente de “Cocó”.

Logo de manhã no outro dia minha mãe matou a tal galinha para fazer o almoço e depois à mesa, inocentemente, querendo letrar a neta primogênita sobre essas coisas do campo foi logo explicando que o rico prato era a Cocó. Incrédula, Cristiane abriu dois olhos cheios de terror e indignação, e minha mãe então mostrou-lhe o “pé da Cocó”.

Tamanha monstruosidade dos adultos deve ter sido incompreensível para ela, que tomou-se de profunda repugnância pelo prato, que recusou-se a comer durante quase um ano. Foi muito difícil convencê-la a comer frango novamente, porque para ela deveria ser algo assim como canibalismo ao devorar um amigo de brincadeiras.

Vejo hoje as crianças serem criadas diante de telas e teclados, sem o mínimo de exposição ao mundo real, sendo letradas apenas no mundo virtual. Acostumadas a deletar amigos das redes sociais, metralhar monstros quase reais nos videogames, será que um dia desenvolverão algo próximo à compaixão? Será que a morte ou sofrimento de outros seres um dia lhes despertará pena? Será que terão oportunidade de ter sequer um trauma de infância, um arranhão no joelho, um braço quebrado nas travessuras?

Pobres crianças apartadas da terra, das moscas e das Cocós. Quando lhes será permitido viver sua infância?

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Zailda Coirano

sexta-feira, 9 de março de 2012

Trabalho escolar

No colégio eu era certinha, estudiosa, aprendia fácil a matemática, a história, a gramática. Mas pra coisa errada eu era lerda que só vendo. Comparando com minhas colegas sabichonas que davam nó em pingo dágua com o pé nas costas – algumas delas até com os dois – eu ficava anos-luz atrás com minha santa ignorância.

Até certo ponto eu achava trabalho em grupo uma chatice, era só a professora dizer que o trabalho era em grupo e já saíam as alunas na carreira pra ficar no grupo das saidinhas. Eu não entendia, mas também não fazia força pra descobrir. Ficava bem sosssegada no meu lugar e quando a irmã perguntava de que grupo eu era, dizia que não era de nenhum, então ela me espichava um olhar de desaprovação e me juntava ao grupo das sem grupo.

Grupo dos sem grupo tem regras próprias, é a rapa do tacho, a sobra, o que ninguém quer ou que não quer ninguém. Então o que a gente queria menos ainda era ver a cara umas das outras, pra não lembrar que estávamos ali num bando de rejeitadas, amontoadas às pressas pelo dedo indicador da professora.

Aí a gente já sabia, combinávamos e uma dava o papel, outra fazia o trabalho e a que tinha a letra mais bonita passava tudo a limpo, se alguma de nós soubesse desenhar fazia uma capa caprichada e a gente papava ali uns pontos extras pela apresentação.

Mas um belo dia, não sei por que cargas dágua eu estava lá contando até 100 e esperando que todas as alunas se encontrassem com as outras alunas com as quais queriam formar um grupo, quando ouço um “psiu”. Olhei e estavam acenando de um grupo, um daqueles das alunas sapecas, e que era também um dos mais disputados.

Fiz que não era comigo, lá no fundo acreditei que não era mesmo. Só podia ser engano ou gozação. Mas não, uma delas chamou meu nome, acenou para que eu me aproximasse. Dei uma de difícil, espichando um olhar de rabo de olho. Insistiram. Devido a insistentes pedidos, fui chegando assim meio a contragosto.

Dessa vez a freira já me apontava para me arrolar para o grupo das enjeitadas quando percebeu que eu já me empoleirara ali, junto com as requisitadas espertinhas. Deu um sorriso amarelo quase abóbora, de quem não acreditava no que via e eu dei um também de “nem eu, madre”.

Marcaram o trabalho para o dia seguinte, à tarde, e lá fui eu. Logo que cheguei achei que estava no endereço errado. Música, refrigerante, quitutes. Era uma festa? Não, sua tonta. Era o trabalho.

Bem, de trabalho não houve nada. Falaram da vida dos outros, falaram de namorados, à certa altura inventaram que iam maquiar-se usando as pinturas da mãe da dona da casa, que providencialmente havia saído. Aí foi demais para mim. Não querendo sair à francesa, mesmo porque não tinha jeito, dei uma desculpa esfarrapada, já estava tarde, eu não trouxera uma blusa, com certeza ia esfriar…

Olharam-me com ar de pena. Saí meio às pressas, ignorando as risadinhas às minhas costas.

Ah, e o trabalho? Uma delas ia fazer à noite, amanhã cedo era só assinar.

No trabalho em grupo seguinte ferrei as quatro patas no assoalho, empacada que nem uma mula velha, só saí do meu lugar quando a madre, com o indicador hirto e incisivo, juntou-me ao grupo de enjeitadas como quem espanta moscas.

Zailda Coirano

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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Leitura dinâmica

modelosGibiAos quatro anos aprendi a ler com os gibis, que eram terminantemente proibidos e acusados injustamente de criar uma tendência à preguiça mental, já que baseavam-se em figuras e pouca coisa havia para ler.

As freiras os olhavam com um misto de desprezo e desaprovação, eram condenados e recolhidos sumariamente. Imagino hoje o que diriam elas ao ver nossos jovens escrevendo em miguxês no msn, o que pensariam elas ao perceber que muitos deles nunca abriram um livro e a primeira coisa que lhes ocorreria ao serem solenemente apresentados a um de nossos amigos de papel seria jogá-los a um canto.

Décadas se passaram e tenho a certeza de que os gibis, tantas vezes acusados injustamente por nossa preguiça de raciocínio, seriam agora eleitos amigos do peiro, mais ainda que os sutiãs.

Aqueles gibis que foram aprisionados em gavetas longe de nossas vistas seriam agora endeusados e servidos à mesa de leitura como se fossem pratos finos para o mais refinado paladar. Seriam agora revestidos de elogios e engrandecidos em seu potencial.

Mas os adolescentes de agora tem um paladar diferente, não querem chegar perto de um livro, exceto aqueles que constam das listas dos vestibulares que querem prestar! Os livros agora, longe de serem vistos como difusores de cultura, são apenas um degrau a mais para conseguirem o que querem e se leem o fazem apenas por pura obrigação.

Zailda Coirano

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