quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Leitura dinâmica

modelosGibiAos quatro anos aprendi a ler com os gibis, que eram terminantemente proibidos e acusados injustamente de criar uma tendência à preguiça mental, já que baseavam-se em figuras e pouca coisa havia para ler.

As freiras os olhavam com um misto de desprezo e desaprovação, eram condenados e recolhidos sumariamente. Imagino hoje o que diriam elas ao ver nossos jovens escrevendo em miguxês no msn, o que pensariam elas ao perceber que muitos deles nunca abriram um livro e a primeira coisa que lhes ocorreria ao serem solenemente apresentados a um de nossos amigos de papel seria jogá-los a um canto.

Décadas se passaram e tenho a certeza de que os gibis, tantas vezes acusados injustamente por nossa preguiça de raciocínio, seriam agora eleitos amigos do peiro, mais ainda que os sutiãs.

Aqueles gibis que foram aprisionados em gavetas longe de nossas vistas seriam agora endeusados e servidos à mesa de leitura como se fossem pratos finos para o mais refinado paladar. Seriam agora revestidos de elogios e engrandecidos em seu potencial.

Mas os adolescentes de agora tem um paladar diferente, não querem chegar perto de um livro, exceto aqueles que constam das listas dos vestibulares que querem prestar! Os livros agora, longe de serem vistos como difusores de cultura, são apenas um degrau a mais para conseguirem o que querem e se leem o fazem apenas por pura obrigação.

Zailda Coirano

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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Doida de pedra

loucura1Final de tarde de sábado, banco da rodoviária de uma cidadezinha do interior. Dois cães sarnentos se espicham sob um restinho de sol, vez por outra bocejando o cansaço do bater de pernas e patas pelas ruas empoeiradas do quase vilarejo, ora caçando moscas imaginárias no ar.

O ônibus que não vinha, depois de 8 horas em pé tentando enfiar gramática e vocabulário nas cabeças adolescentes que pairavam no ar, inconsequentes, tentando imaginar quantos estariam online agora, com que roupa vestir o corpitcho para a festa de logo mais à noite, desgraça pouca é bobagem.

Nem bem cinco minutos de espera, e lá vem ela, conversando com seu interlocutor saído da demência, vinda diretamente das páginas de uma revista de moda dos anos 80. Dizem as mais famosas e ferinas línguas das leva-e-traz da cidadezinha que ela enlouqueceu de tanto estudar. Também queria ensinar cabeças esvoaçantes nas tardes de sábado, parou no meio do caminho, a sanidade perenemente escondida sob um véu de sandices que assustavam os desavisados e divertiam os sádicos de plantão na rodoviária quase abandonada.

Apenas alguns bêbados desgarrados, ensaiando uivos numa viola emprestada, arremedando cantores de modas sertanejas ultrapassadas e arrastadas de pinga. Ao fundo surge a doida, que de boba não tem nada. Dizem que era apaixonada pelo médico da cidade, mais de uma vez teve que sair arrastada de sua casa, aos berros exigindo que a vil, a usurpadora de maridos imaginários, que ainda por cima lhe esfregava uma foto sórdida ao lado dele vestida de noiva, deixasse a casa onde se via dona em seus delírios. De boba nada tinha, comentava-se que o homem era um pitéu e que não se fazia necessário estudar à loucura para endoidecer de paixão pelos olhos verdes e rosto moreno claro.

Hoje a louca sorridente para à frente da professora, sorri e anuncia que se fechar os olhos será teletransportada. Inicia sua viagem à frente da quase colega.

- A capital da Espanha é Madri.

Acena a professora com a cabeça um “sim”.

Descamba a doida:

- Agora fecho os olhos, dou um pulo e estou em Madri.

Doida salta de olhos fechados, teatral.

A professora abana a cabeça.

- A capital de Portugal é Lisboa.

A professora aprova a frase, dessa vez de cabeça baixa, procurando não chamar muito a atenção. Já alguns pares de olhos curiosos se riem da cena. Professora espicha um olhar na direção da rua de onde vem o ônibus. Nada.

- Fecho os olhos e estou em Lisboa.

Novo salto, parece flutuar enquanto seu sapato de Dancing Days fura a fronteira dos dois países, com um nadinha de esforço e imaginação delirante.

Sorriso nervoso da professora. O rosto já queima, as mãos se esfregam no colo. Maldito ônibus que não chega!

- Agora me dê a mão, vamos viajar juntas.

Estende a mão, exigente. Encara a professora. Não aceita não como resposta. Sabe-se que não se pode contrariar.

Professora com ar de horror, imagina-se de mãos dadas com a doida, voando léguas em sua viagem tresloucada que nem precisa de maconha nem nada para acontecer. Tinha nome a zelar. Olha que os alunos podem aparecer. E se aparece um pai de aluno? Terror. Bem que podia saber viajar no tempo e espaço como a outra, para assim dar um salto e desaparecer de repente de diante dos olhares curiosos e bocas de risadas disfarçadas.

Chega afinal o ônibus. A professora pula em seu interior, quase voa. Tromba com a porta. Sorri desconsertada para o motorista que a olha, desconfiado. Pinga no final da tarde?

Ela foge, trôpega, para o fundo da condução, encontra um banco. Da janela vê a outra, feliz, enleada em seu delírio, já esquecida de denegrir sua reputação construída com anos de trabalho e dedicação.

- A capital da Terra do Nunca é Peter Pan.

Piorava a olhos vistos. O ônibus sai de mansinho. Aliviada, a professora repousa de leve a cabeça no encosto do banco e antes de sair da cidade já ressona e caça cabeças imaginárias à sua frente.

- A capital de…

Zailda Coirano

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Crime e castigo

Companheiro infantil de travessuras, o primo sempre acatava as tresloucadas propostas de artes pueris mais ou menos sem consequências. Fosse atear fogo ao pano de prato sujo de leite derramado na cozinha ao simular “guerra nas estrelas”, fosse enterrar as colheres usadas para cavar “pocinho” no quintal. O primo era um companheiro para todas as horas de artes e traquinagens, nunca colocando em dúvida a astúcia da prima, pouca coisa mais velha, que nascera com uma mente pervertida e descambada para o mal-feito, escolada na arte de tapar o sol com a peneira, sempre planejando uma arte torta para encobrir artes menores. E – via de regra – redundando em desastres mais ou menos vultosos, que por sua vez careciam de alguma ideia luminosa e digna do espírito de porco herdado de família para escamoteá-los dos olhos severos da avó.

A arte pirotécnica no pano de prato da avó necessitava ser feita sem deixar vestígios, nada melhor do que realizá-la dentro do fogãozinho de lenha da avó, que ficava no quintal. O primo – co-autor das desgraças de família – vem lá com uma garrafa de álcool para acabar de uma vez com o tal pano em velocidade espantosa. Naturalmente que a ideia só surgiu depois que a prima já havia ateado fogo ao pano, o que provocou uma explosão e em segundos primo e prima olhavam de boca aberta TODAS as roupas do varal incendiadas.

Mais que depressa, corre o primo a arrancar as labaredas denunciadoras da corda e acaba queimando a mão. Grita de dor e a prima tapa-lhe a boca: não vá acordar a vó, que dorme tranquila seu cochilo da tarde, alheia aos perigos da infância sadia com quintal no interior de São Paulo.

Vassouras à mão, tratam os dois de varrer toda a lambança e ensaiar uma cara de santo do pau oco quando a vó, ao recolher a roupa, perguntar:

- Eu não estendi a toalha do Zé nesse varal?

Ninguém sabe, ninguém viu. A velha avó está ficando caduca, dirão o tio e a tia mais tarde, com olhar penalizado.

Zailda Coirano

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quinta-feira, 7 de abril de 2011

Bullying

escadariaQuem é que não sofreu bullying quando estava na escola, lá pelos idos de 60, 70? Sofrer a gente sofria, só que não sabia que sofria e nem o que era. A gente só sabia que incomodava, às vezes até doía. Mas a gente levava aquilo como sendo parte do processo de aprendizado.

Hoje fala-se muito em bullying, parece até que foi inventado nos anos 2.000, mas qual! É das tais coisas que existem desde que o mundo é mundo. Antigamente atendia por outro nome menos pomposo e sem o sotaque americano, não era bullying coisa nenhuma, era “frescura”.

Sendo da raça negra, de origem humilde, com “cabelo ruim” e ainda por cima metida a besta é mais-do-que-óbvio que já fui alvo de tudo quanto é tipo de zombaria, maldadezinhas pequenas e outras enormemente grandes, que se fossem lá nos States justificariam invasão da escola anos mais tarde com fuzilamento de culpados e inocentes. Mas isso lá, aqui a gente tem que dar o “jeitinho brasileiro”.

Pois que além de todos esses motivos citados aí em cima havia ainda mais um – esse imperdoável – e que não podia passar em brancas nuvens. Quando pequena tive pólio – e se não morri foi porque vaso ruim não quebra como me explicou anos mais tarde minha santa e defunta vovozinha, que Deus a tenha – e mesmo tendo aprendido a andar, contrariando os prognósticos de todos aqueles doutores sabichões que me atenderam e trataram, ao subir a escada para a aula matinal em fila indiana e cabeça baixa a perna afetada não subia, a perna boa a arrastava escada acima penosamente e quando chegava quase lá sempre havia uma alma bendita que me dava um esbarrão assim como quem não quer nada, me fazendo voltar aos trambolhões alguns degraus para baixo. Riam elas e ria eu – porque nunca consegui conter o riso ante um bom tombo ou descida catando cavaco fosse minha ou de outros – e lá ia eu arrastando a perna meio morta escada acima enquanto as colegas que não tinham nada melhor pra fazer se dobravam de rir.

Isso durou 4 anos a cada manhã e era mais certo que o repicar do sino à hora da entrada. Mas um dia encheu o saco e resolvi que a brincadeira já tinha dado o que tinha para dar. Ao final da aula, quando as maldosas colegas iam para seus lares encher o bucho com os quitutes ricos de suas mesas lautas eu ficava mais alguns minutos – talvez horas – treinando para subir escada “igual gente”.

Tanto fiz que aprendi a subir como todos os outros mortais, um degrau com cada pé, e até hoje uso esse recurso quando me convém. Não que eu me atreva a subir aos trancos pulando de dois em dois e assim me arriscando a estabacar-me degraus acima ou espichar-me de cara no chão (o que iria fazer minhas maldosas colegas rolarem escada abaixo atrás de mim de tanto rir) mas pra quem era, bacalhau bastava.

E assim foi que a única coisa que minhas gentis colegas faziam melhor que eu – que era subir escada “que nem gente” – e nem disso podiam mais se gabar, e depois de mais de uma ter rolado a escada depois de tentar o golpe antigo da topadinha “sem querer” no alto da escada a brincadeira perdeu a graça.

Claro que devem ter convocado às pressas uma reunião onde chegaram esbaforidas largando lá suas vassouras estacionadas de qualquer jeito à porta do Clube das Bruxas, para mancomunarem uma forma de expor “aquela negrinha metida” ao ridículo de uma forma que a colocasse definitivamente em seu devido lugar. Mas se tem uma coisa que eu nunca soube foi qual é o meu devido lugar.

A escada do colégio deve estar lá no mesmo lugar e eu me pergunto quantas por lá desceram aos trambolhões vítimas da maldade alheia. Tantas outras escadas tive que subir nessa vida, às vezes com muito mais dificuldade. Tantos degraus nessa vida a galgar… Mas quando as forças faltavam, as pernas e o coração fraquejavam e eu já estava a ponto de desistir, lá estavam as cabeças vazias e loiras degraus acima, com um sorriso maroto já apregoando o encontrão e o tombo que iriam causar.

Não só por mim ou por elas, mas por todos os que também teriam que passar pelas madeixas louras e maldosas eu perfilava meus pontos fracos junto a meus pontos fortes e os obrigava a marcharem para cima e avante. E não houve cabeça loura ou cotovelo maldoso que conseguisse me fazer voltar.

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sábado, 19 de março de 2011

Lição de casa

1221703752155Lição de casa é aquela coisa chata da qual o professor e os pais fazem questão e que o aluno faz questão de não fazer. Acontece que para aprender – ou descobrir quanto aprendeu – é necessária, mas vá tentar enfiar isso na cabeça de um aluno!

Sempre fiz a minha direitinho – e até levava uns croques quando não lavava as mãos antes de fazer. Era tudo ali no capricho, letra desenhada e se tivesse que apagar, que não deixasse ali nenhum vestígio do crime, ou lá viriam mais sermões…

O mundo gira, as coisas mudam mas algumas coisas parecem imutáveis: o aluno de hoje odeia lição de casa tão ou mais visceralmente que a aluna que eu fui, 40 anos atrás. Com internet, TV, games, baladas (que começam a frequentar aos 13, 14 anos) já não há nem aquela minoria que gostava de apresentar um trabalho caprichado ao professor. Os poucos que fazem não é com aquela vontade, e fazem com o msn ligado.

Segunda-feira, dia de recolher a tarefa de uma classe de quinta série, todos na faixa dos 10, 11 anos. Um deles, uma porcariazinha de pouco mais de 1 metro, mal chamo seu nome se levanta e vem em minha direção. Fica em pé à minha frente e com uma desfaçatez que quase me faz titubear, pigarreia e lasca:

- Esqueci o livro no carro de meu pai e meu cachorro comeu meu livro.

“Ah, não!” – penso eu – “Agora vai me jogar aquela famigerada “the dog ate my homework”!”

E não é que a porcariazinha não se deixa intimidar e mesmo eu arqueando uma das sobrancelhas em sinal de aviso prévio de “problemas” continua:

- Uma parte ele engoliu, mas o que sobrou ficou todo babado, tive que jogar fora.

O garoto leva jeito pra coisa, determino mentalmente que será um grande conquistador daqui a 3 ou 4 anos. Talento para mentir não lhe falta, nem pisca o danado.

Desisto do sermão, a classe já olha a cena com crescente interesse, alguns ensaiam uma risadinha diante de tão talentoso cara-de-pau. O garoto sorri. Pego meu caderno e enquanto rosno um “an-han” boto um “xis” em vermelho na frente do nome do garoto e digo qualquer coisa sobre comprar urgentemente ração para o cão antes que coma o computador, e sigo em frente com minha correção.

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