A tensão pairava no ar, a atmosfera era tão densa que quase se poderia cortá-la com uma faca. Nós estávamos todas quase imóveis, perfeitamente enfileiradas e emperdigadas enquanto a irmã Salete consultava suas anotações em sua mesa, vez por outra mexendo-se na cadeira ou lançando um olhar perscrutador por cima de nossas cabeças. Era dia de prova de matemática. Era o horror dos horrores e nos debruçávamos silenciosas, frente à folha cheia de algarismos e cifras aterradoras.
Algumas atreviam-se a lançar um olhar por cima dos ombros das colegas, mas o pavor de ser flagrada era maior do que a vontade de colar. Raramente alguma colega mais afoita gabava-se de tal feito, e era olhada por semanas com ar de admiração e inveja pelas outras. Dava status colar no colégio.
Nesse dia em particular irmã Salete estava absorta em suas contemplações quando Anália começou a se remexer na carteira e um zum-zum-zum percorreu a sala. Eu, entretida que estava com meus cálculos não fazia idéia do que estava se passando, e ao levantar a cabeça dei com o olhar da freira que já se erguera por sobre os óculos e se espalhara pela sala toda como uma metralhadora giratória, tão ou mais aterrador que esta. Trêmula, abaixei rapidamente os olhos para a prova, já que colar ou olhar algo que não fosse a própria prova era quase que um pecado mortal, com uma penitência à altura.
Tão logo a freira baixou de novo os olhos para suas notas ouviu-se um murmúrio e um som que se assemelhava a um leve ressonar. Na sala grande e arejada, em silêncio mortal e amedrontado, poderia ouvir-se um alfinete cair no chão primorosamente encerado e lustrado pelas alunas semi-internas, que desfrutavam da boa educação e da companhia das ilustres filhas bem-nascidas da nata da sociedade araçatubense à custa de serviços gerais.
A Telma, normalmente tão falante, atreveu-se a pigarrear e assim que a freira a olhou, balbuciou:
- Há algo errado com a Agnes...
A irmã Salete levantou da cadeira o corpanzil imenso, não sem um certo esforço que a idade e as guloseimas extras lhe impingiam e aproximou-se da carteira da Agnes, que estava literalmente com a cara enfiada na prova. Chamou-a algumas vezes e por fim chacoalhou-a pelo ombro e nada. Sentenciou:
- Ela está dormindo.
E escalou logo duas alunas das mais fortes para arrastá-la até a sala da direção, de onde seria levada para casa.
Ficamos ansiosas e nos entreolhávamos assustadas, dormir durante a prova? Como alguém poderia ter tamanho sangue-frio e tal descaso com evento tão importante? Era tudo um mistério, nunca algo assim acontecera em toda a história do Colégio Nossa Senhora Aparecida.
Somente no dia seguinte soubemos pela boca da própria Agnes. Ela tomara Coca-cola e café a noite toda para se manter acordada e estudar, e durante a prova, quando o efeito da beberagem passou, simplesmente adormecera e não houve cão que a acordasse.
Claro que isso foi punido à altura, além do zero na prova - inapelável - a coitada da Agnes passou a ser encarada como aluna-problema, que se "drogava" e era evitada por algumas como se fosse portadora de um vício ou moléstia contra o qual não havia cura. Para outras ela passou a ser vista como líder, alguém a se imitar. Tanto umas quanto outras creio que sentiam uma secreta inveja dela.
De qualquer forma, nossa ilustre diretora tratou de encomendar a um médico da região que nos fizesse exames "anti-doping" periodicamente e nos ministrasse quinzenalmente aulas a respeito de tóxicos - como evitá-los, e a partir daquele dia éramos "revistadas" antes de entrar na classe para que se certificassem de que não levávamos nenhuma substância "proibida".
(por Zailda Mendes)
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