Final de tarde de sábado, banco da rodoviária de uma cidadezinha do interior. Dois cães sarnentos se espicham sob um restinho de sol, vez por outra bocejando o cansaço do bater de pernas e patas pelas ruas empoeiradas do quase vilarejo, ora caçando moscas imaginárias no ar.
O ônibus que não vinha, depois de 8 horas em pé tentando enfiar gramática e vocabulário nas cabeças adolescentes que pairavam no ar, inconsequentes, tentando imaginar quantos estariam online agora, com que roupa vestir o corpitcho para a festa de logo mais à noite, desgraça pouca é bobagem.
Nem bem cinco minutos de espera, e lá vem ela, conversando com seu interlocutor saído da demência, vinda diretamente das páginas de uma revista de moda dos anos 80. Dizem as mais famosas e ferinas línguas das leva-e-traz da cidadezinha que ela enlouqueceu de tanto estudar. Também queria ensinar cabeças esvoaçantes nas tardes de sábado, parou no meio do caminho, a sanidade perenemente escondida sob um véu de sandices que assustavam os desavisados e divertiam os sádicos de plantão na rodoviária quase abandonada.
Apenas alguns bêbados desgarrados, ensaiando uivos numa viola emprestada, arremedando cantores de modas sertanejas ultrapassadas e arrastadas de pinga. Ao fundo surge a doida, que de boba não tem nada. Dizem que era apaixonada pelo médico da cidade, mais de uma vez teve que sair arrastada de sua casa, aos berros exigindo que a vil, a usurpadora de maridos imaginários, que ainda por cima lhe esfregava uma foto sórdida ao lado dele vestida de noiva, deixasse a casa onde se via dona em seus delírios. De boba nada tinha, comentava-se que o homem era um pitéu e que não se fazia necessário estudar à loucura para endoidecer de paixão pelos olhos verdes e rosto moreno claro.
Hoje a louca sorridente para à frente da professora, sorri e anuncia que se fechar os olhos será teletransportada. Inicia sua viagem à frente da quase colega.
- A capital da Espanha é Madri.
Acena a professora com a cabeça um “sim”.
Descamba a doida:
- Agora fecho os olhos, dou um pulo e estou em Madri.
Doida salta de olhos fechados, teatral.
A professora abana a cabeça.
- A capital de Portugal é Lisboa.
A professora aprova a frase, dessa vez de cabeça baixa, procurando não chamar muito a atenção. Já alguns pares de olhos curiosos se riem da cena. Professora espicha um olhar na direção da rua de onde vem o ônibus. Nada.
- Fecho os olhos e estou em Lisboa.
Novo salto, parece flutuar enquanto seu sapato de Dancing Days fura a fronteira dos dois países, com um nadinha de esforço e imaginação delirante.
Sorriso nervoso da professora. O rosto já queima, as mãos se esfregam no colo. Maldito ônibus que não chega!
- Agora me dê a mão, vamos viajar juntas.
Estende a mão, exigente. Encara a professora. Não aceita não como resposta. Sabe-se que não se pode contrariar.
Professora com ar de horror, imagina-se de mãos dadas com a doida, voando léguas em sua viagem tresloucada que nem precisa de maconha nem nada para acontecer. Tinha nome a zelar. Olha que os alunos podem aparecer. E se aparece um pai de aluno? Terror. Bem que podia saber viajar no tempo e espaço como a outra, para assim dar um salto e desaparecer de repente de diante dos olhares curiosos e bocas de risadas disfarçadas.
Chega afinal o ônibus. A professora pula em seu interior, quase voa. Tromba com a porta. Sorri desconsertada para o motorista que a olha, desconfiado. Pinga no final da tarde?
Ela foge, trôpega, para o fundo da condução, encontra um banco. Da janela vê a outra, feliz, enleada em seu delírio, já esquecida de denegrir sua reputação construída com anos de trabalho e dedicação.
- A capital da Terra do Nunca é Peter Pan.
Piorava a olhos vistos. O ônibus sai de mansinho. Aliviada, a professora repousa de leve a cabeça no encosto do banco e antes de sair da cidade já ressona e caça cabeças imaginárias à sua frente.
- A capital de…
Zailda Coirano
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