sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Doida de pedra

loucura1Final de tarde de sábado, banco da rodoviária de uma cidadezinha do interior. Dois cães sarnentos se espicham sob um restinho de sol, vez por outra bocejando o cansaço do bater de pernas e patas pelas ruas empoeiradas do quase vilarejo, ora caçando moscas imaginárias no ar.

O ônibus que não vinha, depois de 8 horas em pé tentando enfiar gramática e vocabulário nas cabeças adolescentes que pairavam no ar, inconsequentes, tentando imaginar quantos estariam online agora, com que roupa vestir o corpitcho para a festa de logo mais à noite, desgraça pouca é bobagem.

Nem bem cinco minutos de espera, e lá vem ela, conversando com seu interlocutor saído da demência, vinda diretamente das páginas de uma revista de moda dos anos 80. Dizem as mais famosas e ferinas línguas das leva-e-traz da cidadezinha que ela enlouqueceu de tanto estudar. Também queria ensinar cabeças esvoaçantes nas tardes de sábado, parou no meio do caminho, a sanidade perenemente escondida sob um véu de sandices que assustavam os desavisados e divertiam os sádicos de plantão na rodoviária quase abandonada.

Apenas alguns bêbados desgarrados, ensaiando uivos numa viola emprestada, arremedando cantores de modas sertanejas ultrapassadas e arrastadas de pinga. Ao fundo surge a doida, que de boba não tem nada. Dizem que era apaixonada pelo médico da cidade, mais de uma vez teve que sair arrastada de sua casa, aos berros exigindo que a vil, a usurpadora de maridos imaginários, que ainda por cima lhe esfregava uma foto sórdida ao lado dele vestida de noiva, deixasse a casa onde se via dona em seus delírios. De boba nada tinha, comentava-se que o homem era um pitéu e que não se fazia necessário estudar à loucura para endoidecer de paixão pelos olhos verdes e rosto moreno claro.

Hoje a louca sorridente para à frente da professora, sorri e anuncia que se fechar os olhos será teletransportada. Inicia sua viagem à frente da quase colega.

- A capital da Espanha é Madri.

Acena a professora com a cabeça um “sim”.

Descamba a doida:

- Agora fecho os olhos, dou um pulo e estou em Madri.

Doida salta de olhos fechados, teatral.

A professora abana a cabeça.

- A capital de Portugal é Lisboa.

A professora aprova a frase, dessa vez de cabeça baixa, procurando não chamar muito a atenção. Já alguns pares de olhos curiosos se riem da cena. Professora espicha um olhar na direção da rua de onde vem o ônibus. Nada.

- Fecho os olhos e estou em Lisboa.

Novo salto, parece flutuar enquanto seu sapato de Dancing Days fura a fronteira dos dois países, com um nadinha de esforço e imaginação delirante.

Sorriso nervoso da professora. O rosto já queima, as mãos se esfregam no colo. Maldito ônibus que não chega!

- Agora me dê a mão, vamos viajar juntas.

Estende a mão, exigente. Encara a professora. Não aceita não como resposta. Sabe-se que não se pode contrariar.

Professora com ar de horror, imagina-se de mãos dadas com a doida, voando léguas em sua viagem tresloucada que nem precisa de maconha nem nada para acontecer. Tinha nome a zelar. Olha que os alunos podem aparecer. E se aparece um pai de aluno? Terror. Bem que podia saber viajar no tempo e espaço como a outra, para assim dar um salto e desaparecer de repente de diante dos olhares curiosos e bocas de risadas disfarçadas.

Chega afinal o ônibus. A professora pula em seu interior, quase voa. Tromba com a porta. Sorri desconsertada para o motorista que a olha, desconfiado. Pinga no final da tarde?

Ela foge, trôpega, para o fundo da condução, encontra um banco. Da janela vê a outra, feliz, enleada em seu delírio, já esquecida de denegrir sua reputação construída com anos de trabalho e dedicação.

- A capital da Terra do Nunca é Peter Pan.

Piorava a olhos vistos. O ônibus sai de mansinho. Aliviada, a professora repousa de leve a cabeça no encosto do banco e antes de sair da cidade já ressona e caça cabeças imaginárias à sua frente.

- A capital de…

Zailda Coirano

Website ǀ SOS Idiomas ǀ Facebook ǀ Twitter ǀ Web rádio (em breve)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Antes de comentar, leia o recado:

1- Se não quiser usar seu nome verdadeiro, invente um apelido.

2- Comentários anônimos serão deletados se contiverem críticas porque considero covardia criticar no anonimato.

3- Deixando seu email você será avisado quando seu comentário for publicado e respondido no blog. Seu email não será publicado.

4- Assine RSS do comentário para acompanhar as respostas ao tópico.

E o mais importante:

Comentários considerados ofensivos não serão publicados.

Ratings by outbrain