A figura mais assustadora que eu conhecia no Colégio era a madre superiora, com sua eterna e imensa régua de madeira dançando ameaçadoramente nas mãos, seus minúsculos óculos por cima dos quais nos deitava olhares que nos gelavam a alma, pois quando aconteciam isso geralmente significava problemas - e dos grandes. Desde cedo fui comtemplada com uma porção maior da antipatia que esta dedicava de forma igualitária às outras alunas, e imagino que tão subida honra originou-se quando eu estava ainda na segunda série primária.
Criança precoce e rodeada de adultos, nunca tive irmãos para brincar e as escassas visitas de primos não satisfaziam minha necessidade de conviver com outros seres humanos, e como nessa época as crianças eram tratadas mais ou menos como animais de estimação, e na falta de amigos imaginários (porque só fui descobrir a possibilidade de criá-los quando já adulta, portanto tarde demais), voltei minha atenção aos livros a partir de 4 anos.
A princípio apenas via as figuras e ficava imaginando histórias para justificar sua presença entre os caracteres impressos, mas aos poucos percebi que aqueles caracteres eram a parte mais importante e quem os decifrava tinha suas compensações. Foi dessa forma que um dia comuniquei à minha tia que já sabia ler. Tinha então 5 anos.
Claro que ela não acreditou (como sempre, duvidava primeiro de tudo o que eu dizia, só mudando de atitude depois de serem apresentadas provas concretas) e partimos então para a apresentação de provas contundentes do fato. Trouxe-me ela um gibi e ante seus olhos esbugalhados e sua boca estupefata, li até onde julguei necessário para convencer minha tia. Ela convenceu-se e permitiu que eu fizesse algumas "exigências", que eram compensações recebidas sempre que eu me comportava da forma correta ou fazia algo que ela considerasse "digno de orgulho".
Pois que o fato de aprender a ler sózinha foi assim considerado e exigi uma cota semanal de gibis e livros de histórias, no que fui prontamente atendida. Com a recente alfabetização minha tia ficou por alguns meses esquecida de aplicar-me corretivos, de forma que eu me sentia no paraíso, deixada à vontade com minha recente coleção de quadrinhos.
Alfabetizada havia a necessidade de continuar meus estudos e ela encaminhou-me para o colégio, em nossa cidade era o local adequado para instruir e encaminhar as meninas de famílias bem nascidas. Não era o meu caso e eu não entendia bem porque merecera a honra de ser educada dentre as colegas tão bem-postas mas a princípio concordei.
Mesmo tendo apenas 6 anos fui aceita numa sala de primeira série, mas não como uma aluna regular e sim como ouvinte. Como ouvinte logo descobri que tinha meus priviégios: se não quisesse fazer alguma atividade, simplesmente cruzava os braços mas quanto a isso não havia problemas, afinal eu era apenas ouvinte. Podia escolher se faria ou não as provas e acabei fazendo todas, de forma que fui admitida (sob os aplausos de minha tia, que não cabia em si de tanto orgulho) na segunda série.
Éramos uma classe privilegiada porque tínhamos como professora a própria diretora do colégio, a irmã Márcia, que até então me tratava com brandura e carinho. Na certa era uma forma de manter-me na escola, pois tão logo minha matrícula foi efetivada (em caráter permanente) mudou totalmente sua atitude comigo. De terna que era, passou a olhar-me com certa antipatia, que eu não entendia por ser apenas uma criança de 7 anos.
Ao que parece, durante aquele ano em que fui apenas ouvinte estava atravessado em sua goela, pois que passou a dispensar-me um tratamento preferencial em relação às outras colegas. Por preferencial entenda-se que eu era sua aluna preferida na hora das broncas e corretivos, mesmo que não os merecesse.
Quando estou nervosa costumo sorrir, rir ou gargalhar, de acordo com o grau do nervosismo, mas um simples sorriso era para ela como a hora da morte, e passou a classificar-me como "cínica", se é que uma criança de 7 anos lá sabe o que é cinismo. Cinismo em minha opinião é bajular uma criança por um ano e depois brindá-la com a mais solene antipatia.
Pois que num certo dia, durante uma aula de ciências, discorria nossa querida professora e diretora irmã Márcia sobre um assunto qualquer do qual não me recordo em absoluto - mesmo porque não despertou meu interesse na época - enquanto eu me perdia em devaneios. Andando por entre as carteiras ela parou ao lado da minha e deve ter chamado meu nome algumas vezes sem que eu desse sinal de tê-la ouvido, de forma que resolveu me acordar e me aplicou um beliscão no braço direito, que me fez cair estrondosamente das nuvens e voltar à dura realidade terráquea.
Assustada com a inesperada agressão devo ter gaguejado uma resposta qualquer à pergunta que ela me dirigia e à medida que ela se afastava olhei para meu braço e no local do beliscão havia agora uma mancha branca de giz em meu casaco azul-marinho. Fiquei fitando aquela muda prova de que aquilo de fato acontecera até que ela finalmente deu pela coisa. Em seu passeio por entre as carteiras, ao passar por mim sussurrou entre dentes:
- Limpe esse casaco.
Fiz que não com a cabeça, ela parou e eu tremi. Levantei os olhos lentamente e lá estava aquele olhar derramando-se por cima dos óculos numa ameaça muda e indecifrável.
- Limpe o casaco - insistiu ela, e sua voz sibilava por entre os dentes.
- Não - gaguejei. E arrisquei ainda mais - Vou mostrar essa marca para minha tia.
- Espere ao final da aula que quero falar com você.
Ante essa ameaça de morte fui deixando minhas coisas mais ou menos arrumadas, de forma que assim que terminou a mal-fadada aula, desabalei numa corrida desesperada porta afora, temendo que me arrancassem à força a marca que provava a agressão.
Cheguei em casa esbaforida e mal minha tia chegou para almoçar desabei num choro sentido e, mostrando-lhe a marca branca, contei o que tinha acontecido. Minha tia, muito séria, disse que ia à escola conversar com a irmã.
Naturalmente esperei na maior ansiedade possível, do alto dos meus sete anos imaginava que minha tia teria esmagado a madre sob o salto dos seus sapatos quando a vi virando a esquina de volta para casa.
Até hoje não sei qual o teor da conversa, mas a partir desse dia percebi que qualquer tentativa de opor-me à madre seria em vão. Qualquer que tenha sido o rumo da conversa, o que sei é que fiquei um mês de castigo, privada de mesada e dos gibis que eu adorava.
(zailda coirano)
Criança precoce e rodeada de adultos, nunca tive irmãos para brincar e as escassas visitas de primos não satisfaziam minha necessidade de conviver com outros seres humanos, e como nessa época as crianças eram tratadas mais ou menos como animais de estimação, e na falta de amigos imaginários (porque só fui descobrir a possibilidade de criá-los quando já adulta, portanto tarde demais), voltei minha atenção aos livros a partir de 4 anos.
A princípio apenas via as figuras e ficava imaginando histórias para justificar sua presença entre os caracteres impressos, mas aos poucos percebi que aqueles caracteres eram a parte mais importante e quem os decifrava tinha suas compensações. Foi dessa forma que um dia comuniquei à minha tia que já sabia ler. Tinha então 5 anos.
Claro que ela não acreditou (como sempre, duvidava primeiro de tudo o que eu dizia, só mudando de atitude depois de serem apresentadas provas concretas) e partimos então para a apresentação de provas contundentes do fato. Trouxe-me ela um gibi e ante seus olhos esbugalhados e sua boca estupefata, li até onde julguei necessário para convencer minha tia. Ela convenceu-se e permitiu que eu fizesse algumas "exigências", que eram compensações recebidas sempre que eu me comportava da forma correta ou fazia algo que ela considerasse "digno de orgulho".
Pois que o fato de aprender a ler sózinha foi assim considerado e exigi uma cota semanal de gibis e livros de histórias, no que fui prontamente atendida. Com a recente alfabetização minha tia ficou por alguns meses esquecida de aplicar-me corretivos, de forma que eu me sentia no paraíso, deixada à vontade com minha recente coleção de quadrinhos.
Alfabetizada havia a necessidade de continuar meus estudos e ela encaminhou-me para o colégio, em nossa cidade era o local adequado para instruir e encaminhar as meninas de famílias bem nascidas. Não era o meu caso e eu não entendia bem porque merecera a honra de ser educada dentre as colegas tão bem-postas mas a princípio concordei.
Mesmo tendo apenas 6 anos fui aceita numa sala de primeira série, mas não como uma aluna regular e sim como ouvinte. Como ouvinte logo descobri que tinha meus priviégios: se não quisesse fazer alguma atividade, simplesmente cruzava os braços mas quanto a isso não havia problemas, afinal eu era apenas ouvinte. Podia escolher se faria ou não as provas e acabei fazendo todas, de forma que fui admitida (sob os aplausos de minha tia, que não cabia em si de tanto orgulho) na segunda série.
Éramos uma classe privilegiada porque tínhamos como professora a própria diretora do colégio, a irmã Márcia, que até então me tratava com brandura e carinho. Na certa era uma forma de manter-me na escola, pois tão logo minha matrícula foi efetivada (em caráter permanente) mudou totalmente sua atitude comigo. De terna que era, passou a olhar-me com certa antipatia, que eu não entendia por ser apenas uma criança de 7 anos.
Ao que parece, durante aquele ano em que fui apenas ouvinte estava atravessado em sua goela, pois que passou a dispensar-me um tratamento preferencial em relação às outras colegas. Por preferencial entenda-se que eu era sua aluna preferida na hora das broncas e corretivos, mesmo que não os merecesse.
Quando estou nervosa costumo sorrir, rir ou gargalhar, de acordo com o grau do nervosismo, mas um simples sorriso era para ela como a hora da morte, e passou a classificar-me como "cínica", se é que uma criança de 7 anos lá sabe o que é cinismo. Cinismo em minha opinião é bajular uma criança por um ano e depois brindá-la com a mais solene antipatia.
Pois que num certo dia, durante uma aula de ciências, discorria nossa querida professora e diretora irmã Márcia sobre um assunto qualquer do qual não me recordo em absoluto - mesmo porque não despertou meu interesse na época - enquanto eu me perdia em devaneios. Andando por entre as carteiras ela parou ao lado da minha e deve ter chamado meu nome algumas vezes sem que eu desse sinal de tê-la ouvido, de forma que resolveu me acordar e me aplicou um beliscão no braço direito, que me fez cair estrondosamente das nuvens e voltar à dura realidade terráquea.
Assustada com a inesperada agressão devo ter gaguejado uma resposta qualquer à pergunta que ela me dirigia e à medida que ela se afastava olhei para meu braço e no local do beliscão havia agora uma mancha branca de giz em meu casaco azul-marinho. Fiquei fitando aquela muda prova de que aquilo de fato acontecera até que ela finalmente deu pela coisa. Em seu passeio por entre as carteiras, ao passar por mim sussurrou entre dentes:
- Limpe esse casaco.
Fiz que não com a cabeça, ela parou e eu tremi. Levantei os olhos lentamente e lá estava aquele olhar derramando-se por cima dos óculos numa ameaça muda e indecifrável.
- Limpe o casaco - insistiu ela, e sua voz sibilava por entre os dentes.
- Não - gaguejei. E arrisquei ainda mais - Vou mostrar essa marca para minha tia.
- Espere ao final da aula que quero falar com você.
Ante essa ameaça de morte fui deixando minhas coisas mais ou menos arrumadas, de forma que assim que terminou a mal-fadada aula, desabalei numa corrida desesperada porta afora, temendo que me arrancassem à força a marca que provava a agressão.
Cheguei em casa esbaforida e mal minha tia chegou para almoçar desabei num choro sentido e, mostrando-lhe a marca branca, contei o que tinha acontecido. Minha tia, muito séria, disse que ia à escola conversar com a irmã.
Naturalmente esperei na maior ansiedade possível, do alto dos meus sete anos imaginava que minha tia teria esmagado a madre sob o salto dos seus sapatos quando a vi virando a esquina de volta para casa.
Até hoje não sei qual o teor da conversa, mas a partir desse dia percebi que qualquer tentativa de opor-me à madre seria em vão. Qualquer que tenha sido o rumo da conversa, o que sei é que fiquei um mês de castigo, privada de mesada e dos gibis que eu adorava.
(zailda coirano)