Estudando em colégio de freiras tínhamos que ter orações na ponta da língua, não faltar às missas e à fila da comunhão, preservar a virtude e a verdade, etc, etc... Em suma, éramos obrigadas a manter nossas pobres e inocentes almas a salvo das garras do demônio ou nos veríamos às voltas com as garras das freiras, e nem sei o que era pior. Na época para nós as das freiras eram infinitamente piores e mais dolorosas, sobretudo porque estavam mais próximas e com um telefone ao alcance das mãos. Bastava uma delas discar o número de nossa casa ou do serviço de um de nossos progenitores e milagrosamente lá se iam todas as parcas regalias de que desfrutávamos: adeus mesada, adeus saídas à tarde para fazer trabalhos nas casas das colegas (ocasiões em que aproveitávamos para raspar as pernas e tirar sobrancelhas escondido de nossos pais), nada de bailinhos ou festas de aniversário no final de semana.
Claro que conduzindo a coisa dessa forma tínhamos um conhecimento profundo de epístolas e parábolas e nossa fé no poder do vinho e pão transubstanciados em sangue e carne de Cristo era inabalável. Não que não acreditássemos naquilo, simplesmente não nos atreveríamos a duvidar sequer em nossos mais secretos pensamentos.
Pois que um belo dia a nossa querida madre superiora veio à nossa sala a troco de dar um recado ou coisa que o valha e resolveu sabatinar as alunas, nesse semestre entregues aos cuidados de uma jovem freira, que ainda não tinha provado por A + B sua eficiência em técnicas de tortura e lavagem cerebral. Tínhamos consciência de que ela seria sabatinada também, e de acordo com a presteza de nossas respostas seria julgada com mais ou menos clemência.
A freirinha torcia as mãos, aflita, sentada em uma carteira junto a nós, e íamos respondendo à enquete da madre. Ela não se dava ao trabalho de fazer perguntas individuais, ia apenas perguntando e solicitando às parcas e trêmulas mãos que se levantavam que respondessem. Confiava ela plenamente em seu poder de pastorear rebanhos de criaturas inocentes para agir assim. Por seu lado a freirinha nos olhava, aflita a cada mão que se levantava e era solicitada a dar sua resposta. Isto causava-lhe um ligeiro estremecimento, talvez temendo alguma resposta não condizente com o local e a postura que era insistentemente cobrada de nós.
- Era Jesus mesmo filho de Deus? - perguntava a madre, e lá uma dúzia de mãos acenavam, solícitas e aflitas para livrarem-se logo do peso do saber. E quando vinha a resposta esperada, a madre dava um sorrisinho de aprovação em direção à freirinha, que abaixava a cabeça, momentâneamente aliviada.
E assim foram se seguindo as perguntas e respostas, tranquilamente aceitas pela madre, que já ia se retirando quando resolveu fazer mais uma pergunta, dessa vez no geral:
- Quem acredita na virgindade de Nossa Senhora ao dar a luz a Jesus levante a mão.
E logo dezenas de mãos se ergueram, hirtas, à espera da contagem mental da superiora. Mas de repente sua sobrancelha se arqueou e seus olhos lançaram chispas por cima dos óculos. Estremecemos todas e olhamos na direção daquele olhar ameaçador. Um par de mãos descansava, indolente, sobre a carteira de sua dona. Ah, heresia das heresias, quem era a mortal que atrevia-se a duvidar da virtude da mais digna e elevada representante da Igreja Católica?
A aluna parecia distraída e a madre imaginou que se tratava apenas de um erro menor, talvez a aluna não tivesse ouvido a pergunta. Inquiriu, ameaçadora:
- Você não vai levantar a mão? - e já a pesada régua de madeira rodava em suas mãos, nervosamente.
- Não, acho impossível ela continuar virgem depois de Cristo nascer porque naquele tempo não havia cesariana.
A desfaçatez da resposta quase fez os olhos da madre, da freira e os nossos próprios pularem das órbitas. Como? Poderíamos confiar em nossos ouvidos? Todas as cabeças voltaram-se na direção da aluna. A madre lhe disse, em tom de voz apavorante para nós, mas que não pareceu intimidar nem um pouco à aluna:
- Levante-se e diga em voz alta na frente de todas nós que não acredita na virgindade da VIRGEM Maria. - solicitou, dando uma ênfase aterradora e cheia de ameaças insuspeitadas à palavra "virgem", como que a provar a obviedade da pergunta e a obrigatoriedade da resposta.
A aluna sustentou a ameaça velada e repetiu aberta, clara e desafiadoramente o que lhe fora pedido. Pairou um silêncio sepulcral sobre nós, ao final do qual a madre levou-a para sua sala e não a vimos mais até que voltou no dia seguinte.
Tinha um ar de prisioneiro que libertara-se tarde demais da prisão, quando já seu espírito sucumbira aos rigores e horrores que fora obrigado a partilhar com ratos e moléstias. A menina tinha a aparência de quem fora subjugada pela força, cujo espírito fora obrigado a curvar-se ao poder do mais forte.
Nunca mais ela foi a mesma. Afastou-se pouco a pouco das amigas, e enquanto conversávamos ela ficava cismando em seu canto, até que no final nem mais nos dávamos conta de sua presença. O episódio foi esquecido, mas dentro dela uma chama se apagara e outra, mais forte e poderosa acendera-se em seu lugar. Por vezes eu via no brilho de seus olhos um rastro dessa nova chama, a cada vez que ela era obrigada a encarar uma de nossas tutoras espirituais. Em silêncio, todas nós entendíamos que força era essa que nascia e em nosso interior também sentíamos, cada uma a seu modo, essa nova chama brilhar.
(zailda mendes)