quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A melhor da turma

Logo que passei pelo portão do colégio fui atropelada pela Anália, que era a mais estressadinha da turma. Ela me segurou pelo braço e parecia desesperada. Suas pupilas estavam dilatadas e os olhos pareciam querer saltar das órbitas, de tão esbugalhados. Mal pude entender quando ela me perguntou, a voz saindo junto com meio litro de baba, que ela costumava expelir abundantemente quando estava muito nervosa:

- Estudou pra prova?

Prova, que prova? - pensei eu. E se a Anália estava nervosíssima eu estava apavorada quando balbuciei:

- Não estou sabendo de prova nenhuma.

- A prova bimestral de matemática!

Aquilo foi como um bombardeio em meu estômago, que se contraiu dolorosamente sobre o parco desjejum que eu tomara naquela manhã. Começaram a tremer-me as pernas, os braços, os dentes se chocavam uns nos outros e eu mal podia conter o pavor. Fui obrigada a confessar às colegas aflitas que não poderia ajudá-las com meus escassos conhecimentos dessa vez.

A prova seria depois do recreio, de forma que entre uma aula e outra eu dava uma passada d'olhos no caderno, tentando decorar as complicadas fórmulas e entender aquelas famigeradas cifras. Quando o sinal que anunciava a temida aula tocou, nos entreolhamos assustadas antes de partir para a sala de aula, em silêncio e de cabeça baixa, como o boi quando vai para o matadouro.

Na prova fiz o que pude e pelo que pude estudar até que estava fácil, mas eu não tinha muitas esperanças. Depois da aula comentamos, desalentadas, como tínhamos nos virado durante aquele amargo episódio. Fomos para casa, cabisbaixas, esperando o dia do anúncio das notas e do resultado do exame.

Enfim chegou o temido dia, o professor (que era um dos raros que tínhamos, em sua grande e esmagadora maioria eram freiras) entrou com um calhamaço de provas corrigidas na mão e isso acabou com nossas esperanças de que ele tivesse sofrido um acidente ou que sua casa tivesse ardido em chamas - queimando assim aquela papelama inútil.

Antes de dar as notas ele começou um discurso que ouvimos com o coração na mão e absolutamente paralisadas. Nossos piores temores se concretizavam:

- Como o resultado das provas foi muito abaixo do esperado, vou entregar as provas e dar as notas em voz alta, porque aqui parece que ninguém estudou nada.

E começou a ladainha:

- Fulana... zero. Beltrana... zero.

E assim ia chamando as alunas e a cada nome e a cada prova era um zero. Logo no princípio aquilo foi aterrador, mas à medida em que os zeros iam se sucedendo algumas alunas começaram a dar risinhos, já se conformando com a situação.

Quando a pilha já estava quase acabando, chamou nossa "crânio" em matemática:

- Agnes... quatro.

Que horror, ela conseguiu um quatro - pensei. E então me dei conta que ainda não recebera minha prova, que seria a última. Mas antes nosso professor resolveu terminar o sermão que iniciara.

- Eu ia anular essa prova, mas depois mudei de idéia por causa dessa prova - fez questão de deixar claro.

Por causa dessa prova. E essa frase me assombrou os sonhos durante muitas noites de minha vida.

Ainda estávamos lá, pasmas, sen entender nada quando ele então trovejou:

- Zailda... dez.

O caminho de minha carteira até a mesa do professor foi um dos caminhos mais difíceis que já percorri até hoje em minha vida. Enquanto avançava na direção da mão que me estendia com aquele maldito pedaço de papel, milhões de coisas passavam por minha cabeça. E principalmente que por eu ter tirado dez a prova não seria anulado, portanto minhas colegas todas ficariam com nota zero no boletim.

Essa foi a primeira vez que um sucesso meu prejudicou outras pessoas, pessoas essas que eram minhas amigas, e que jamais entenderam como eu pude tirar um dez se disse que não sabia nada e portanto não as ajudei a estudar antes da aula. Se alguma delas estiver lendo essa crônica, espero que agora entenda e, mesmo que tardiamente, me perdoe.

(por Zailda Mendes)

sábado, 26 de janeiro de 2008

Eu e minha boca grande

Já te aconteceu de dar um fora daqueles, mas daqueles bem fora mesmo, daqueles que a gente depois não sabe como consertar? E vai explicar depois, que não é bem isso que a gente quer dizer...

Eu já disse aqui que falo demais, e segundo minha saudosa avó, quem fala demais dá bom-dia a cavalo. Pois é, dá bom-dia, boa-tarde, boa-noite... Mais de uma vez eu disse coisas que depois não tinha como consertar. E fora é coisa do capeta, se você tenta consertar aí é que fica feio mesmo. E normalmente nascem daquelas conversas que nem tem razão de ser, perfeitamente dispensáveis.

O fora mais antigo que consigo me lembrar, que deve ter se dado logo no início de minha carreira de "forista", foi na quinta série. Estávamos eu e uma colega de escola, enorme ela por sinal, muito maior que todas da minha classe, um verdadeiro monstro, sentadas no banco de reserva na hora da Educação Física, assistíamos ao jogo, quando o seguinte diálogo se passou:

- Jogam bem as meninas, né?

Como ela nunca me dera bola, apressei-me a concordar, claro que jogavam muito bem sim.

- E o que você acha da Marisa?

Naturalmente queria saber das qualidades técnicas da garota, mas a tonta aqui que tava com a tal Marisa atravessada (a guria não me passava) e com a santa honestidade que Deus me deu (em má hora, diga-se de passagem):

- Ah, uma vagabunda!

E ante os olhos atônitos da colega dois-metros-maior-que-eu-tanto-em-altura-como-em-largura, fui desfiando o que eu realmente achava da dita cuja. Infelizmente, empolgada com a descrição das "qualidades" da mencionada jogadora, nem percebi os olhos dela, esbugalhados de espanto. Quando acabei de falar ela, lívida, me explicou:

- Marisa é minha sobrinha, sou irmã caçula da mãe dela. E me espere na saída da escola.

Fiquei ali, atarantada, perguntando que mal eu fiz pra Deus, imaginando alguma doença, qualquer coisa que pudesse ser forjada a fim de ir embora mais cedo pra casa, adiando assim o tal encontro "na saída da escola".

Bem, não deu. Na saída a tal colega me esperava com seu uniforme que mais parecia uma barraca de camping de tão grande que ela era e uma cara de botar medo aos capetas no inferno.

Surra? Claro que levei, e das boas, e mais ainda teria apanhado se não tivesse aproveitado um momento de hesitação dela (foi tomar fôlego pra me bater mais ainda) e seu tamanho avantajado e não tivesse escapado passando por debaixo das pernas dela. E corri, hein? Meu Deus, como eu corri...

Depois desse, dei muitos outros foras, de maior ou menor gravidade, claro que com consequências (físicas, pelo menos) menores e menos doloridas. Mas eu não sou a campeã, tenho uma amiga que se poderia chamar de "Rainha dos Foras". E não se emenda, dá um atrás do outro.

Há uns anos, na Festa do Peão da minha cidade, ocasião em que todas as entidades armam lá sua barraca pra vender alguma coisa e arrecadar fundos, essa prezada amiga dançou e bebeu a noite toda, lá pelas tantas, já meio "alegre", chegou numa dessas barracas, bateu com a mão na mesa e exclamou, em alto e bom som:

- Quero uma cerveja, mas que seja uma cerveja bem gelada, de cerveja quente eu já to cheia!

Todos nas mesas vizinhas pararam com seus copos no ar, olhando-a. Ela não entendeu nada até que se aproximou dela uma mocinha, e em voz mais ou menos baixa lhe disse:

- Moça, aqui é a barraca da Liga Anti-alcoólica. Só temos refrigerante. A senhora não quer uma Coca-cola?

Ela não queria. Saiu de lá aos trambolhões, procurando um buraco pra se enterrar.

(escrito por Zailda Mendes)

Vocação religiosa

Venho de uma família católica e fervorosa, e além de ter estudado muitos anos em colégio de freiras fui criada por uma tia solteirona (quase) convicta - e digo quase porque muito mais tarde casou, coitada! - e uma vó pra lá de brava. Minha vida era do colégio pra casa e vice-versa. Aos domingos, missa. Sábado, missa. Não-sei-qual-sexta-feira-do-mês, missa. E tome missa!

Claro, frequentando tanta missa lá pelos sete anos eu já decidira o que ia ser quando crescesse. Um dia cheguei pra minha tia e disse, olhos baixos e desenhando uma figura imaginária com o pé no assoalho do quarto dela: "Tia Cida, quando crescer quero ser freira."

Nossa, foi uma glória, já correu minha vó a anunciar às vizinhas a santa vocação da neta. Deve ter sido mesmo um alívio, "criar filha dos outros não é fácil". Nada de namoricos, nada de gravidezes indesejadas, nada de dores de cabeça! Ia ser freira, pronto. Estava tudo resolvido, nada de percalços e surpresas (pra lá de) desagradáveis.

E durante meses não se falou em outra coisa. Tinha visita em casa eu já sabia: lá pelas tantas me chamavam (porque criança não ficava junto com visita dando palpite e fazendo gracinha, não era essa bagunça de hoje não, senhora!) e pediam: "Fala aí pra Dona Fulana (alguma gorda chata com três ou quatro filhas que espichavam o olho pra avaliar o que sairia da boca dessa magricela aqui) que é que você vai ser quando crescer."

Eu já incorporara totalmente o papel e as futuras responsabilidades, de forma que baixava os olhos contritos e respondia numa voz submissa que toda freira deve ter (achava eu) e lascava de um fôlego só: "Vou ser freira."

A gorducha da Dona Fulana arregalava os olhos na mais profunda admiração e depois espichava um olhar de inveja pra minha tia que colocava a mão no peito inchado de orgulho e depois olhava pras filhas dela e soltava um profundo suspiro de resignação.

Isso se repetiu até o dia em que fomos à missa eu e minha tia, e nos sentamos no primeiro banco, como sempre. Antes de começar a missa ela me perguntou: "Já pensou como vai ser sua vida de religiosa?" Nisso entrava o padre pra rezar a missa e eu, com os olhos nele.

Acontece que esse padre chegara há alguns meses à nossa cidade, coincidentemente bem à época de minha súbita conversão à vida religiosa. Era um rapaz lá pela casa dos vinte, alto, moreno, profundos olhos verdes e um sorriso encantadoramente lindo.

E eu respondi: "Sim, vai ser ótimo. Eu e padre Sicrano nos casaremos e teremos muitos filhos." Minha tia parou de acompanhar a missa que começava e me perguntou, duvidando do que tinha ouvido: "Como? Casar com o padre? De onde tirou essa idéia absurda?"

Saí do transe em que estava assistindo ao padre que rezava divinamente uma missa e perguntei: "Por que?" E ela: "As freiras não casam com os padres. Permanecem solteiras como a titia."

Bem, nesse dia caiu por terra a mais nova vocação religiosa da cidade. Se os padres não se casavam com as freiras, então eu ia ser freira pra que? E assim tive minha primeira desilusão, aos 7 anos de idade.

(escrito por Zailda Mendes)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Como aprendi a nadar

Conhece alguém que tem bronquite? Mas daquelas de arrebentar mesmo, que quando a pessoa respira parece que tem um gato desses novinhos dentro do peito, tamanha é a chiadeira? Pois era dessas mesmas que eu tinha, quando dava a crise eu tinha que dormir com uma pilha de travesseiros, sentada, porque senão não conseguia respirar. E tentaram comigo tudo quanto era tratamento: os de choque, os de injeção (daqueles que você toma injeção um dia sim e no outro também), os experimentais, os populares (leite de égua), os espirituais (novena pra sarar), e sabe-se lá que mais foi tentado. Mas tudo em vão. Quando a crise vinha era de amargar, febrão danado, sensação de asfixia e uma tosse que deus-me-livre.

Aos 12, 13 anos o médico achou que já se havia tentado e tudo e que agora meu corpo é que tinha que vencer a doença, então pediu à minha tia, aquela santa senhora que fazia tudo por mim, talentosíssima em chantagens emocionais, que ficasse sócia de um clube, desses com piscina, pra que eu aprendesse a nadar. Nadando eu desenvolveria a caixa toráxica e...

Quando ouvi isso quase sarei da crise na hora. Devo ter arregalado tanto os olhos que por milagre não pularam das órbitas. Piscina? Clube? Ai meus sais que eu quase tive um desmaio de tanta emoção. E cobrei tanto o tratamento que em poucas semanas já estava no clube. E de biquini!

Como eu fiz pra convencer minha talentosa e prestimosa tia a me comprar um biquini em vez de um maiô é outra história e bem mais longa que essa. Não é por nada não, caro leitor, mas não era só minha tia a talentosa da família...

Mas como ia dizendo, lá estava eu no clube, a piscina à minha frente, aulas com o professor de natação... mas quem disse que eu aprendia? Era uma tortura a hora da aula, ainda bem que durava apenas uma hora. Em matéria de natação eu era como um peixe: se caísse na água não saía sozinha, tinham que entrar pra me tirar.

Mas como o dia tem 24 horas, das quais eu passava o máximo possível no clube, e a aula durava uma horinha apenas, isso não me abalou. Logo descobri outros encantos no tal do clube. E não é que conheci um moreno alto, atlético, olhos verdes e campeão de natação? Em vez de aprender a nadar eu estava mais pra pescar. Joguei a rede e deu certo. Em poucas semanas estávamos namorando.

Ah, pode escancarar a boca à vontade de tanta admiração, se você está admirado caro leitor, admiração maior era a minha! Eu olhava para aquele deus grego e tinha que me beliscar o tempo todo pra ter certeza de que não estava sonhando. E logo já estava frequentando também os bailinhos de quinta e domingo.

Aprendi a dançar e comecei a sair à noite, já ia ao cinema (mas só na domingueira, que era a matinê de domingo), e quando eu ia embora o namorado me levava em casa! Nem precisa dizer que eu estava nas nuvens, tanto que nem ia mais às aulas de natação.

Você já deve estar imaginando que minha tia descobriu que eu estava namorando e "matando" a aula de natação, né? Bem, que ela descobriu sobre o namoro, descobriu mesmo, só que bem mais tarde. Quanto às aulas de natação, não teve como.

Um dia eu estava dando a volta na piscina (que era só o que eu sabia fazer), mas bem agarrada à borda, já que disso dependia minha vida, quando um engraçadinho me deu um "caldo", mas daqueles bem dados, daqueles em que você não só afunda a cabeça de seu semelhante na água como também fica segurando-a lá embaixo. Foi quase tentativa de homicídio, porque além de não saber nadar também não sou peixe e não respiro dentro dágua.

O susto foi tão grande que pra me libertar saí nadando. E nadando cachorrinho, veja só.

(por Zailda Mendes)

sábado, 19 de janeiro de 2008

Levada da breca

Eu devia ter lá pelos cinco anos de idade e conta minha tia que eu tinha aprontado uma "arte", daquelas que criança não faz por maldade, é o natural delas, mas que os adultos vão logo fazendo tempestade em copo dágua. Não que eu fosse um anjo, nunca fui santa, era o que se costumava chamar no meu tempo "levada da breca".

Meu pai sempre perdoou todas as traquinagens dos filhos (principalmente das filhas) e quando minha irmã mais nova abria a boca a chorar numa manha que não tinha mais fim, suspirava, compreensivo:

- Ah, essa menina é tão sensível!

E as tias todas podiam esquecer as ganas de nos tacar puxões de orelha e croques que sonhavam em nos aplicar. Pelo menos na presença de meu pai, pois pra ele tudo o que eu aprontava nada mais era que demonstração da minha criatividade. Se eu abria um buraco no chão com a colher do faqueiro novo e enterrava a colher pra não ter que lavá-la (e isso confesso aqui, hoje, que fiz muitas vezes), olha que menina criativa! Tantas e tantas colheres sumiram até que fomos pegos, eu e meu primo Kico, bem no auge de uma de nossas saídas criativas pra evitar trabalho duro que levamos uma bela surra de minha avó. Com ela criatividade infantil se curava no chicote. E com ela nem meu pai retrucava.

Pois numa fase criativa dessas, conta minha tia que aprontei uma das boas, infelizmente no momento a memória não me permite ser mais específica como talvez mais aprouvesse ao gosto dos leitores, e ela então chamou-me ao seu quarto e começou aquele senhor sermão:

- Mas muito bonito! Como é que você pode fazer uma coisa dessas? Bla-bla-bla... Papai do Céu vai ficar muito triste com você...

E ela jogava todas as já manjadas chantagens emocionais, para as quais sempre demonstrou incomparável talento e eu, ali, firme, nem um tremorzinho pra demonstrar arrependimento.

- A titia faz tudo por você e você apronta uma dessas. Estou muito decepcionada com você!

A essa altura conta a titia que sempre fazia tudo por mim que eu desatei num choro sentido, desses de soluçar. Animada com o resultado do falatório todo, ela perguntou:

- Ah, então se arrependeu da coisa que fez e agora está chorando? Quer pedir desculpas?

- Não - conta a titia que eu respondi, entre amargos soluços - é que eu não sei o que é "decepcionada".

(por Zailda Mendes)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A missa da sexta-feira

Estudando no colégio toda primeira sexta-feira do mês éramos levadas em bandos por uma irmã até a capela do colégio para assistir uma missa. Devíamos todas confessar e comungar, disso dependia a salvação de nossas pobres almas católicas, e portando deveríamos ir para o colégio em jejum.

A missa era mais comprida que as demais, pelo que me lembro, e ficávamos mais de uma hora e meia num senta-levanta-ajoelha e cantando hinos, recitando ladainhas, com o estômago rangendo e esfregando nas costelas de tanta fome.

A certa altura já ansiávamos por botar alguma coisa na boca, nem que fosse uma hóstia, transubstanciada no corpo de Cristo. Qualquer coisa servia, e já que estávamos ali pra isso mesmo...

Pois que nessa manhã em particular já nos preparávamos para nos enfileirar, contritas e de cabeça baixa rumo ao altar para aplacar um pouco a fome de nosso corpo e de nossa alma (segundo as irmãs) com a hóstia duplamente bendita, quando a Elisa foi escorregando, escorregando e estatelou-se no chão. Caiu como um saco de batatas, com um estrondo que ecoou pela capela silenciosa.

Um momento de paralisia e terror e logo duas freiras correram a acudí-la, mas qual, ela nem se mexia. Aquilo era novidade e nos entreolhamos por entre as rendas dos véus, mas logo uma freira nos fez sinal que nos apressássemos a entrar na fila da comunhão e cuidássemos de nossa alma, deixando que elas se encarregariam do corpo da colega que literalmente jazia no chão frio de piso encerado.

Como sempre acontecia em ocasiões como essa a Elisa foi levada para casa pelos pais e nós ficamos ardendo de curiosidade à espera de notícias. Que vieram apenas dois dias depois, quando ela finalmente foi liberada para voltar às aulas.

O tombo sensacional ocorrera porque ela estava em jejum, desmaiara de fome. Mas isso não tirou para nós o brilho da ocasião. Em nossos momentos de folga imitávamos o tombo colossal. Em casa eu tentava cair durinha como ela, mas infelizmente nunca consegui dominar perfeitamente essa arte de cair como um pedaço de pau estatelando-me no chão.

Algumas colegas aperfeiçoaram essa arte e seguiram praticando-a, com mais ou menos talento teatral, ora momentos antes de provas para as quais não haviam estudado, ora em situações delicadas ou difíceis. Seja como for, dali pra frente nossa classe ganhou um colorido especial com as alunas especializadas nessa fina maneira de "sair de cena", para desespero das freiras e gáudio das colegas presentes, que só não aplaudiam para não avacalhar com a performance.

Tudo seguia assim sempre igual, vez por outra com uma de nossas talentosas aspirantes a atrizes esborrachando-se no chão, quando nossa querida diretora veio certa manhã substituir uma professora durante uma prova. Poucos minutos antes de iniciar-se o pavoroso evento ouvimos um ruidoso baque e vimos nossa colega Tânia esborrachar-se no piso, como vez por outra vinha acontecendo.

A freira aproximou-se dela que jazia, imóvel. Nem um músculo se mexia, quase não respirava. A freira a cutucou com o pé, abaixou-se e tomou-lhe o pulso e depois, dirigindo-se a uma das semi-internas, pediu em alto e bom som:

- Corra até a lavanderia e peça à irmã Teresa uma brasa. Quando a pessoa desmaia não há nada melhor do que encostar-lhe uma brasa ao umbigo para que acorde.

Ficou provado que a medicação era de fato eficiente, pois não houve nem necessidade de sua aplicação, bastando apenas mencioná-la que a aluna voltou a si imediatamente. O remédio foi de fato tão eficiente que a cura foi completa e total, espantosa mesmo. Nunca mais ninguém sofreu desmaios em nossa classe.

(por Zailda Mendes)

Prova de matemática

A tensão pairava no ar, a atmosfera era tão densa que quase se poderia cortá-la com uma faca. Nós estávamos todas quase imóveis, perfeitamente enfileiradas e emperdigadas enquanto a irmã Salete consultava suas anotações em sua mesa, vez por outra mexendo-se na cadeira ou lançando um olhar perscrutador por cima de nossas cabeças. Era dia de prova de matemática. Era o horror dos horrores e nos debruçávamos silenciosas, frente à folha cheia de algarismos e cifras aterradoras.

Algumas atreviam-se a lançar um olhar por cima dos ombros das colegas, mas o pavor de ser flagrada era maior do que a vontade de colar. Raramente alguma colega mais afoita gabava-se de tal feito, e era olhada por semanas com ar de admiração e inveja pelas outras. Dava status colar no colégio.

Nesse dia em particular irmã Salete estava absorta em suas contemplações quando Anália começou a se remexer na carteira e um zum-zum-zum percorreu a sala. Eu, entretida que estava com meus cálculos não fazia idéia do que estava se passando, e ao levantar a cabeça dei com o olhar da freira que já se erguera por sobre os óculos e se espalhara pela sala toda como uma metralhadora giratória, tão ou mais aterrador que esta. Trêmula, abaixei rapidamente os olhos para a prova, já que colar ou olhar algo que não fosse a própria prova era quase que um pecado mortal, com uma penitência à altura.

Tão logo a freira baixou de novo os olhos para suas notas ouviu-se um murmúrio e um som que se assemelhava a um leve ressonar. Na sala grande e arejada, em silêncio mortal e amedrontado, poderia ouvir-se um alfinete cair no chão primorosamente encerado e lustrado pelas alunas semi-internas, que desfrutavam da boa educação e da companhia das ilustres filhas bem-nascidas da nata da sociedade araçatubense à custa de serviços gerais.

A Telma, normalmente tão falante, atreveu-se a pigarrear e assim que a freira a olhou, balbuciou:

- Há algo errado com a Agnes...

A irmã Salete levantou da cadeira o corpanzil imenso, não sem um certo esforço que a idade e as guloseimas extras lhe impingiam e aproximou-se da carteira da Agnes, que estava literalmente com a cara enfiada na prova. Chamou-a algumas vezes e por fim chacoalhou-a pelo ombro e nada. Sentenciou:

- Ela está dormindo.

E escalou logo duas alunas das mais fortes para arrastá-la até a sala da direção, de onde seria levada para casa.

Ficamos ansiosas e nos entreolhávamos assustadas, dormir durante a prova? Como alguém poderia ter tamanho sangue-frio e tal descaso com evento tão importante? Era tudo um mistério, nunca algo assim acontecera em toda a história do Colégio Nossa Senhora Aparecida.

Somente no dia seguinte soubemos pela boca da própria Agnes. Ela tomara Coca-cola e café a noite toda para se manter acordada e estudar, e durante a prova, quando o efeito da beberagem passou, simplesmente adormecera e não houve cão que a acordasse.

Claro que isso foi punido à altura, além do zero na prova - inapelável - a coitada da Agnes passou a ser encarada como aluna-problema, que se "drogava" e era evitada por algumas como se fosse portadora de um vício ou moléstia contra o qual não havia cura. Para outras ela passou a ser vista como líder, alguém a se imitar. Tanto umas quanto outras creio que sentiam uma secreta inveja dela.

De qualquer forma, nossa ilustre diretora tratou de encomendar a um médico da região que nos fizesse exames "anti-doping" periodicamente e nos ministrasse quinzenalmente aulas a respeito de tóxicos - como evitá-los, e a partir daquele dia éramos "revistadas" antes de entrar na classe para que se certificassem de que não levávamos nenhuma substância "proibida".

(por Zailda Mendes)

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